“Vamos ser gente de novo.” Agitando um papelucho na mão, Cássio Roberto Carvalho Maciel, 52, caminhava pelos corredores da PUC-RS para voltar ao ginásio esportivo em que está abrigado.
Morador da Pintada, uma das ilhas do lago Guaíba próximas a Porto Alegre tragadas pela cheia, ele perdeu sua casa e escapou por pouco. No dia 4, sábado, foi resgatado por uma moto aquática quando estava na residência de um dos patrões –ele é caseiro e cuidava de várias casas na ilha.
O papel agitado por Cássio na última quarta-feira (8) era o comprovante para pegar em até um mês uma nova certidão de nascimento. Naquele dia, a Corregedoria-Geral da Justiça do RS, a Corregedoria Nacional de Justiça e o Ministério dos Direitos Humanos realizaram um mutirão para emitir certidões de nascimento e de casamento para os que perderam seus documentos na enchente.
“Vim aqui porque só com a certidão [de nascimento] posso começar a tirar os outros documentos. Vou aproveitar para fazer todos”, afirmou.
A diarista Lucirene da Silva, 46, que morava em Humaitá (zona norte da capital), bairro que continua completamente submerso, e está igualmente abrigada no ginásio, também aproveitou o mutirão para providenciar a retirada de sua certidão de nascimento.
“Por alguma parte a gente vai ter de recomeçar, que seja por aí, sendo gente de novo. É um jeito de mostrar que estamos vivos”, comentou Lucirene.
A emissão de documentos básicos é um pequeno fio de uma imensa teia em construção, ou melhor, em reconstrução, um dos sinais de uma metrópole buscando aos poucos voltar à normalidade, enquanto ainda se recupera da maior tragédia da história da cidade –e do Rio Grande do Sul.
Até a manhã deste sábado (11), foram confirmadas 136 mortes e havia 125 pessoas desaparecidas e 756 feridas no estado. Nas áreas atingidas diretamente pelas enchentes moravam 635,8 mil pessoas, segundo levantamento da Folha com base em dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) e da UFRGS (Universidade Federal do RS).
Pela estimativa, 303 mil edificações residenciais foram alagadas em todo o RS, a maioria em Porto Alegre: 84,5 mil, ou quase 28% do total. Cidades na região metropolitana da capital também foram muito afetadas, como Canoas (a segunda com mais imóveis atingidos, 65,7 mil) e São Leopoldo (a terceira, com 38,6 mil).
Dada a dimensão da tragédia, a retomada apresenta inúmeros percalços. Serviços básicos, como o fornecimento de água e luz, ainda estão limitados em várias regiões da capital, sobretudo na zona norte, a mais devastada pela tragédia.
Na sexta-feira (10), a CEEE Equatorial, concessionária de energia que atende Porto Alegre, disse que ainda havia 163 mil clientes sem luz em municípios de sua responsabilidade, e a maior parte (141 mil) permanecia assim por questões de segurança –por estarem em áreas alagadas. Na capital, informou, eram 96 mil clientes nessa condição.
O DMAE (Departamento Municipal de Água e Esgotos), empresa municipal de abastecimento, divulgou que 4 dos 6 sistemas que tratam e fornecem água para a capital estavam operantes. Alertou, porém, que a água ainda estava “bastante turva (com barro)”, o que dificultava o tratamento e justificava a vazão reduzida.
No início da semana passada, logo após o pico das enchentes, a situação era dramática, com só duas estações funcionando parcialmente. Mesmo depois do religamento das maiores centrais, como a ETA Menino Deus, na terça (7), bairros da zona sul como Santa Tereza, Camaquã e Cavalhada permaneciam sem água.
Mesmo cidades vizinhas da região metropolitana menos atingidas pelas cheias, como Viamão, tiveram problemas de abastecimento. Assim como o DMAE fez na capital, a Corsan, companhia que atende a maior parte do restante do estado, espalhou 12 cisternas (com capacidade para 2.000 litros cada uma) em pontos de grande movimento de Viamão.
Uma delas estava à beira da rodovia RS-040, que liga a região metropolitana ao litoral. Ao final de uma longa fila de moradores com galões, garrafas pet e recipientes diversos, Antônio Marcos dos Santos, funcionário da Corsan, controlava o fornecimento: 40 litros por pessoa. “Pode até reabastecer, mas daí precisa voltar para o final da fila”, explicou.
A técnica em odontologia Anne Ineia carregou vários galões, para ela e para parentes. “Aqui tá difícil, mas em Porto Alegre a situação é crítica, perto deles estamos no luxo”, disse ela, que atuava como voluntária em apoio aos desabrigados dos bairro de Sarandi e Humaitá, zona norte da capital.
Alguns metros adiante da cisterna, do outro lado da avenida, mais uma fila com gente aguardando encher seus botijões. Uma loja de produtos agropecuários abriu o acesso da população à sua torneira, abastecida por poço artesiano. “Como os órgãos públicos não têm como atender tanta gente ao mesmo tempo, a força da comunidade é importante nessa hora”, afirmou Paulo Sergio Brage, sócio da loja.
O motoboy Jorge Gonçalves deixou o local com dois galões de 20 litros vazios: a fila estava grande, o fluxo da torneira é fraquinho, a filha Giovanna, 4, já chorava agoniada. Ele preferiu voltar outra hora. Estava sem trabalho, porque, embora morador de Viamão, 100% dos serviços que presta são em Porto Alegre.
Um motoboy parado em casa é só uma pecinha que ajuda a explicar as ruas mais vazias e o trânsito menos intenso. Num plano mais amplo, o sistema de transportes da capital está funcionando de modo parcial. Ônibus têm circulado em esquema de fim de semana, com a frota reduzida.
No início da noite de sexta-feira (10), o terminal de ônibus Triângulo, na zona norte, um dos maiores e mais movimentados de Porto Alegre, estava quase vazio. Moradora do bairro Rubem Berta, Tamara Farias aguardava havia mais de meia hora pelo ônibus 631, que pega diariamente para ir até o trabalho, em uma empresa agropecuária próxima ao terminal –em tempos normais, os carros da linha passavam a cada 15 minutos.
“Os ônibus também estão mais vazios na parte da manhã, mesmo com menos veículos circulando. Na vinda sempre ficava de pé, agora tenho vindo sentada”, afirmou Tamara, cuja família não sofreu diretamente os efeitos da enchentes. Ela resume o sentimento da metrópole nesses dias: “Mesmo quem não sentiu na pele está abalado emocionalmente. Porque afeta tudo. E só se fala nisso, só se ouve e se vê isso. E todos tentam ajudar do jeito que é possível”.
Um dos símbolos mais fortes da retomada da capital foi a cerimônia de abertura, na última sexta (10) à noite, de uma via que ampliou o acesso à cidade. Teve direito a gritos de alegria, transmissão ao vivo e presença de autoridades municipais. O âncora da rádio Gaúcha –emissora que tem coberto a tragédia por praticamente 24 horas ao dia– interrompeu um colega no ar para chamar um outro repórter que trazia do local a notícia urgente.
Já batizada de “corredor humanitário”, pois o acesso por ali será restrito a caminhões com suprimentos, veículos oficiais em serviço e ambulâncias, a nova passagem, na região central, foi aberta com a demolição de uma passarela que impedia o tráfego de carros de maior porte.
Improvisou-se um caminho porque as principais vias do entorno estão alagadas. O corredor deve desafogar a estrangulada RS-118, que até então era a única estrada de acesso a Porto Alegre, a partir do litoral, e está caótica –é uma pista simples.
Hospitais e demais estabelecimentos de saúde de todo o estado foram autorizados a suspender consultas, exames e cirurgias eletivas até 30 de maio, pois o foco é o atendimento emergencial.
A orientação na rede de saúde pública de Porto Alegre é para que qualquer pessoa seja atendida independentemente de possuir prontuário naquela unidade ou cartão SUS –pré-requisitos em tempos normais para fazer exames e retirar medicamentos, por exemplo.
A enfermeira de um posto de saúde na zona norte disse que a maior demanda no atendimento tem sido de pessoas com machucados e/ou cortes sofridos dentro d’água, vítimas de mordidas e arranhões de cães e gatos e pacientes com sintomas respiratórios e gripais.
As aulas na rede municipal de ensino na capital estão suspensas pelo menos até o dia 17 deste mês. Ao mesmo tempo, o Conselho Nacional de Educação flexibilizou o calendário letivo e autorizou aulas remotas.
Tanto estabelecimentos de ensino públicos quanto privados têm sido usados como abrigo para os atingidos pela enchente –o que se aplica também a instituições de ensino superior.
Assim como é feito na PUC e na Ulbra (esta em Canoas), a UFRGS abriga 500 atingidos pelas cheias no ginásio da Faculdade de Educação Física.
O corpo científico da principal instituição gaúcha de ensino público superior também tem sido fundamental no enfrentamento à tragédia, sobretudo com o monitoramento e fornecimento de dados e pesquisas de órgãos especializados como o Instituto de Pesquisas Hidráulicas.