Após o debate do PEC das drogas no Senado [1] o projeto foi remetido a Câmara dos Deputados e nessa casa o que era ruim, ficou pior. Explico: um deputado federal quer equiparar o usuário ao traficante de drogas. Ou seja, ambos teriam as mesmas penas como resposta a comportamentos diferentes.
Spacca
O congressista talvez não tenha se dado conta do que propõe. Se lesse um pouco mais verificaria que esse efeito simbólico do Direito Penal de simbólico não tem nada. Não se pode e não se deve equiparar usuário ao traficante.
Vamos lá senhor deputado, eis as razões do equívoco proposto por Vossa Excelência.
Primeiro, esse critério fere a proporcionalidade. Apenas para que o senhor entenda: as penas levam em consideração a conduta praticada e o bem jurídico tutelado. Isso denomina-se direito penal da culpabilidade. Reprova-se o fato praticado e não o autor da conduta.
Embora o delito de drogas supostamente — e digo isso porque não concordo — proteja a saúde pública, as condutas perpetradas por usuários e traficantes vulneram esse bem jurídico de forma diversa entre si. A lesão ao bem em comento é potencializada por aquele que vende as drogas e não se compara ao usuário que, se for o caso, lesiona-se a si mesmo quando faz uso de substância entorpecente. Já de largada haveria um equívoco nessa falsa ponderação, já que incomparáveis as figuras nessa perspectiva. Vamos ler mais sobre culpabilidade no Direito Penal e sobre proporcionalidade das penas. Vale a pena.
A dois, as penas, como dito anteriormente, não podem ser as mesmas por um critério de racionalidade. Qual a vantagem de colocarmos um usuário no sistema penitenciário? Misturá-lo às facções criminais para que ele se torne mais um integrante? Parece que o representante do povo desconhece o falido sistema carcerário do país e seu já reconhecido estado inconstitucional de coisas. Porém, antes de votar a “genial” ideia de transformar todos que portam drogas em traficantes seria de bom tom que o deputado visitasse alguma prisão. Somente para que visualizasse o que acontece. Ao que parece não tem lido muito os jornais ultimamente sobre as mazelas do sistema.
A três, com a política de drogas proposta pelo deputado seria melhor que o próprio usuário, além de consumir a droga já a vendesse, já que não haverá diferença de pena. Assim, vamos estimular um novo comércio. Todos vendem as drogas. Além de uma satisfação própria arrecada-se um dinheiro. Perdoem-me a ironia, mas diante de propostas como essas, difícil escrever a sério.
Direito Penal
Infelizmente ninguém lê o que sustentam vários autores de Direito Penal e faltam comissões sérias de juristas para discutir propostas legislativas que estejam dentro da nossa sistemática. Projetos de lei populistas há aos montes, mas qual sua real eficiência? Nenhuma! Aumentamos as penas de vários delitos, criamos outros tantos e nada disso diminuiu a criminalidade. Há apenas o aproveitamento de um capital político por parte dos autores desse tipo de proposta perante seu eleitorado de medida populista que não tem qualquer estudo de fundo, isto é, que comprove a sua eficácia ou que demonstre que melhora a vida social de uma comunidade.
A ideia de despenalização para usuários, já contida na atual Lei de Drogas [2] já foi um bom caminho adotado pelo legislador. Nesse sentido, procurou-se uma orientação de política criminal correta e cientificamente comprovada sobre a desnecessidade de encarceramento desta figura. Basta ler o que já foi dito acima. Nada mais do que isso. Caso seja necessário, é só se debruçar sobre a excelente bibliografia de política criminal.
A polêmica das drogas somente veio à tona porque o STF, com razão, resolveu tentar estabelecer um critério de diferenciação pela quantidade — e tão-somente isso — entre usuário e traficante. Isso serviu de barril de pólvora para que o legislativo entrasse na briga alegando que era sua competência legislar sobre o tema. No ponto, não tiro razão ao legislativo. Mas porque não o fez antes?
Na recorrente inércia do legislativo o STF tomou a frente após provocado. Mas isso não justifica o endurecimento das penas e condutas pelas casas legislativas. Aliás, volto ao que já escrevi: esse tema não deveria ser um assunto de PEC. Deveria ficar restrito à legislação ordinária. Infelizmente no Brasil tudo vai para a Constituição.
Por fim, e apenas para reflexão, socorro-me do jurista Claus Roxin (recomendável a leitura aos legisladores):
“A consequente autolesão, em sexto lugar, como também sua possibilitação e fomento não legitimam uma sanção punitiva, pois a proteção de bens jurídicos tem por objeto a proteção frente à outra pessoa e não frente a si mesmo.quando na prática de esportes de risco ocorrem acidentes, os organizadores e promotores devem ficar isentos das consequências jurídico-penais sempre que os desportistas sejam conscientes dos riscos inerentes à prática desportiva. Também a já mencionada aquisição de pequenas quantidades de drogas suaves para o consumo pessoal pertence a este âmbito. O mesmo tem validade para o consumo de álcool e tabaco.”
Atente-se, como mencionei, que o usuário lesiona a si próprio, portanto a saúde pública não seria o bem jurídico tutelado. Neste caso, não se justifica penalizar aquele que se autolesiona como menciona Roxin ,além de vários autores que sustentam a mesma posição. Não desconheço que esse é outro tema polêmico, isto é, sobre a tutela do bem jurídico na questão das drogas, mas de qualquer forma, isso não justifica a equiparação das penas do traficante ao usuário.
Por fim, importante esclarecer que o tema não passa por uma política conservadora ou de direita – ou até mesmo de extrema direita, pois no Brasil tudo está polarizado. Isso é e deveria ser tratado enquanto uma política social de cunho racional e científico. Somente isso. Vale a reflexão.
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[1] Já escrevi sobre isso aqui mesmo nesta ConJur sobre o fato de que a PEC para criminalizar drogas não é assunto para estar na Constituição.
[2] Veja-se, não houve naquele momento a descriminalização, retirando-se tão somente as penas privativas de liberdade para aquele que faz uso de substância entorpecente.