Após dois meses, corpo de Clarinha é velado em Vitória
Dois meses após a morte de Clarinha, a paciente não identificada que ficou 24 anos internada em coma em um hospital em Vitória foi sepultada e enterrada nesta terça-feira (14). “Dá um alívio muito grande poder terminar esse capítulo, permitir que o espírito dela possa descansar de maneira digna. O ciclo agora vai se fechar, mas a história dela segue aberta”, disse Coronel Jorge Potratz, médico responsável pelos principais cuidados durante o período.
O corpo de Clarinha foi enterrado no Cemitério Municipal de Maruípe, em Vitória, às 13h45. Cerimônia aconteceu desde o início da manhã e reuniu funcionários e ex-funcionários do hospital onde ela ficou ao longo desses anos.
No local, duas coroas de flores colocadas sobre o corpo marcaram o fim do sepultamento. “Procurei a vida inteira a família dela e chego à conclusão hoje de que nós constituímos a família dela”, disse o coronel Potratz.
A lápide ainda vai ser feita. A ideia é que tenha apenas o nome Clarinha, uma foto pequena e um versículo da Bíblia, que ainda não foi escolhido.
Despedida da paciente misteriosa
O velório de Clarinha começou às 8h, em Santa Lúcia, na capital. Ao longo da manhã, funcionários e ex-funcionários do Hospital da Polícia Militar (HPM) se revesaram em seu momento de homenagem e despedida.
Por volta das 10h, aconteceu a leitura de um poema por uma ex-funcionária da Enfermagem do hospital que ainda hoje atua no serviço de capelania e seguiu visitando a Clarinha até os últimos momentos.
Às 12h40, teve início a cerimônia de encerramento do velório, momento de emoção para todos os presentes. O coronel Potratz fez uma fala agradecendo a presença de todos, o apoio para o sepultamento, lembrou momentos da Clarinha. Um carta de despedida foi lida, ao som de um violino.
Em seguida, os amigos puderam se despedir uma última vez. Neste momento, Potratz – o responsável legal por ela e que cuidou da paciente por vários anos – colocou gentilmente uma rosa branca sobre as mãos de Clarinha. A urna foi fechada às 13h e seguiu para o Cemitério de Maruípe, também em Vitória.
Além de Potratz, estiveram no velório e enterro parentes do médico.
Enfermeiras se aproximaram da urna para despedida e orações. Uma ex-funcionária fez a leitura de um poema em homenagem à paciente. A papiloscopista da Polícia Federal, Carolini Checon, também foi à despedida de Clarinha.
“Durante anos, a gente tentou auxiliar no trabalho de identificação da Clarinha, comparando as digitais de pessoas desaparecidas com as parciais que a gente conseguia coletar . A pele de Clarinha era muito fininha, a gente recebia ajuda das enfermeiras, era tudo feito com muito cuidado. Depois de tantos anos, não poderia deixar de vir para essa despedida”, disse Carolini.
Paciente morreu há 2 meses
Com autorização da Justiça, foi feito um registro civil, que possibilitou a confecção de uma certidão de óbito e a garantia que a Clarinha não fosse enterrada como indigente.
A certidão ficou com lacunas já previstas, como, por exemplo, os campos de preenchimento de sobrenome e nome dos pais. Já a cidade de origem foi considerada Vitória, local onde ela passou a maior parte da vida, ainda que internada no HPM.
Velório marcado por emoção
Durante o velório o Coronel reforçou ao g1 que sempre quis dar um enterro digno à Clarinha.
“Não imaginava que seria assim, está além das minhas expectativas, isso está me confortando. Ela vai seguir o caminho dela, espiritual. Pra mim, mesmo que ela seja identificada agora ou em algum momento futuro, sempre vai ser a eterna Clarinha”, disse emocionado.
O Coronel, que acompanhou a vida da paciente por mais de duas décadas, disse que conseguiu colaborar com a dignidade de velório e enterro.
“Hoje, pra mim, é um dia de muita tristeza, por a gente não ter conseguido devolver ela pra família dela, mas também uma alegria por estar dando a ela essa dignidade final”, relatou.
“O sentimento de não poder ter concluído a história como eu gostaria que fosse, me pega principalmente porque ela pode ter um filho. Ela chegou pra nós uma menina, devia ter uma criança de no máximo dois anos. É alguém que não se sabe que história tem, onde foi parar, como foi criada. O ciclo agora vai se fechar, mas a história dela segue aberta e eu ainda tenho esperança de que algum dia, ainda vai acontecer alguma coisa. Eu não desisti, Deus comanda tudo. No momento certo vai acontecer e se eu tiver que saber dessa história só do outro lado da vida, eu vou saber aguardar”, refletiu o médico.
O corpo da Clarinha foi retirado do DML nesta segunda-feira (13) e seguiu para o laboratório da empresa funerária para passar pelo processo de tanatopraxia antes do velório. Cerca de quatro profissionais se dedicaram a esse trabalho, que incluiu tratamento, higienização e embelezamento.
Coronel Potratz pediu que uma técnica de Enfermagem do HPM, que também cuidou da paciente, conhecia seu tamanho e principais características, comprasse um vestido branco para a ocasião. Ao saber para quem era o vestido, a loja nem cobrou pelo item.
Inicialmente, Clarinha foi levada para o Hospital São Lucas. Um ano depois, foi transferida para o Hospital da Polícia Militar, também na capital, onde permaneceu até o final da vida.
O coma da paciente era considerado elevado, ela nunca esteve lúcida ou houve qualquer tipo de comunicação consciente com a equipe médica.
Além do nome, nunca houve informações sobre idade, local onde morava e se tinha parentes no Espírito Santo ou em outro estado.
Desde o primeiro momento, a equipe médica teve esperança de encontrar algum parente ou até filho de Clarinha, já que ela tinha uma cicatriz de cesariana, mas isso não aconteceu.
A estimativa é que, em 2024, Clarinha tivesse entre 40 e 50 anos.
Tentativas de identificação da família
Entretanto, ao longo dos 24 anos em que estava internada, mais de cem exames de DNA foram realizados, todos também com resultado negativo. O pico de procura de famílias aconteceu em 2016, após uma reportagem sobre a história de Clarinha ser exibida no Fantástico e o caso ganhar repercussão nacional.
A tentativa que mais se aproximou de uma compatibilidade aconteceu em 2021, quando uma equipe de papiloscopistas da Força Nacional de Segurança Pública usou um processo de comparação facial e fez buscas em bancos de dados de pessoas desaparecidas com características físicas semelhantes às da mulher.
A suspeita é que ela seria uma criança desaparecida em 1976 em Guarapari, que esteve na cidade para uma viagem com a família de Minas Gerais, mas a possibilidade foi descartada. Assim como o caso de Clarinha, esse também nunca foi solucionado.
Enquanto estava viva, digitais foram colhidas apenas de maneira fragmentada porque a pela da paciente era muito fina, e isso nunca permitiu nenhum tipo de comparação.
Médico se responsabilizou pela paciente
Durante todos esses anos, diariamente, a paciente recebeu a visita de médicos e enfermeiros. O médico tenente-coronel Jorge Potratz foi o principal responsável e seguiu com os cuidados mesmo depois de aposentado. Foi ele quem escolheu o nome ‘Clarinha’.
“A gente tinha que chamar ela de algum nome. O nome ‘não identificada’ é muito complicado para se falar. Como ela era branquinha, a gente a apelidou de Clarinha”, disse Potratz.
O médico auxiliou a mulher com produtos básicos para os cuidados dentro do hospital, que não são oferecidos para paciente na situação em que ela se encontrava. Cremes, produtos de higiene, limpeza, fraldas eram adquiridos pelo coronel que custeava as compras.
Outros funcionários e até acompanhantes de pacientes – já que o quarto onde ela ficou sempre foi compartilhado –, também ajudaram lavando as roupas, comprando itens necessárias, dando pequenos presentes e fazendo orações.