O valor de salários pagos a servidores do funcionalismo público federais, estaduais ou municipais que atuam no Ceará chega a superar em mais de 200% o teto do funcionalismo, o que levanta o debate para a necessidade de uma reforma administrativa.
Vale frisar que não há processo aberto no Tribunal de Contas do Estado (TCE) que verse sobre o descumprimentos ao limite no governo estadual, mas uma série de “penduricalhos” permite com que a gestão estadual pague salário bruto superior a R$ 100 mil e líquido acima de R$ 70 mil.
Acontece que estes “extras”, conforme a legislação vigente, compõem itens remuneratórios como antecipação, adiantamento, auxílio, diferença, desconto indevido, judicial, devolução, férias, mês anterior, salário-família, indenização, vencimento complementar, plantão e restituição.
Em suma, tudo isso não é considerado no cálculo sobre o teto.
De acordo com dados da folha de pagamento do mês de abril relativos a março, o Governo do Estado não possui servidores que recebam valores salariais acima de seus respectivos “tetos” constitucionais.
No caso dos servidores do Estado, o valor é de R$ 39.717,69, enquanto o da Prefeitura de Fortaleza chega a R$ 27.391,06.
Para os servidores do Judiciário – inclusive os do Ministério Público – é o equivalente ao salário dos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), de R$ 44.008,52.
Mas, mesmo que previstos em lei, os valores dos “penduricalhos” transformam os montantes recebidos em verdadeiras riquezas por um mês de trabalho.
Após analisar uma série de rendimentos de funcionários por meio do portal da Transparência da Controladoria Geral do Estado (CGE), O POVO encontrou caso de funcionário lotado na Procuradoria Geral do Estado (PGE) que, após os “extras”, ficou com rendimentos superiores ao teto constitucional para sua categoria, definido com base em salário do ministro do STF.
O valor líquido a que o servidor teve acesso em março chegou a R$ 72,3 mil. Destes, o salário pela função era correspondente a R$ 29,8 mil. Há ainda um montante relativo às férias do servidor.
O restante era uma série de quatro tipos diferentes de gratificações, somando outros R$ 23,79 mil. Assim, somente em gratificações/”penduricalhos” o servidor recebe valor equivalente a 79% de seu “salário oficial”.
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Por meio de nota, a PGE afirma que o Governo do Estado observa rigorosamente a legislação estadual e federal no controle do teto remuneratório, sendo acompanhado pelos órgãos de fiscalização interno e externo e também pelos órgãos centrais de gestão do Estado.
Especificamente sobre a PGE, destaca que a carreira de procurador do Estado tem diferenciais específicos e que estão totalmente dentro da lei.
“É importante ressaltar que a carreira de procurador do Estado recebe disciplina própria relativa ao teto constitucional, à semelhança do Judiciário e do Ministério Público, havendo vantagens que pela legislação, inclusive constitucional, ou pela natureza recebem disciplina própria relativa à matéria”, diz.
O POVO questionou sobre as diferenciais em relação aos descontos por salários que superem o teto e a explicação foi a seguinte:
“Quanto às parcelas que são computadas ou não em teto remuneratório, a PGE-CE observa a legislação aplicável à matéria, inclusive em relação às vantagens não computadas para esse fim, não havendo diferenciação entre ativos e inativos, a não ser em razão da especificidade de alguma vantagem recebida somente em atividade”.
A necessidade de se olhar para uma reforma administrativa
Rodrigo Leite, doutor em Administração e ex-consultor do Banco Mundial, avalia que os chamados “penduricalhos” podem ser considerados um dos principais problemas da gestão pública atual por “inflar” ainda mais algumas remunerações já altas.
Defensor de uma reforma administrativa, Rodrigo aponta que deveria haver uma unificação que permitisse apenas quatro adicionais ao salário: auxílio alimentação, auxílio saúde, auxílio creche, além de um adicional para dedicação exclusiva em algumas carreiras.
No entendimento do especialista, a defesa para os supersalários do funcionalismo como a única maneira de “segurar” talentos em relação às ofertas do regime privado não faz sentido, considerando muito mais uma “desculpa” de servidores que não têm mais como justificar o seu altíssimo salário.
“O profissional que recebe R$ 30 mil no serviço público caso tenha esse salário reduzido para R$ 20 mil ele vai sair para o mercado? Ele pode tentar encontrar, mas considero difícil para a maioria dos setores essa realidade de nível salarial”, continua.
Saiba quanto é o teto do funcionalismo
Dados abertos: Servidores “estouram” o teto de diferentes formas e motivos
Após analisar uma série de rendimentos de funcionários, O POVO tomou quatro exemplos de contracheques do funcionalismo estadual.
Um pertencente a um servidor da ativa, lotado na Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural do Ceará (Ematerce) com rendimento bruto de R$ 102 mil.
Outro caso é de servidor da ativa da Procuradoria Geral do Estado (PGE) com salário bruto de R$ 111,6 mil.
Também foram analisados os dados de um servidor aposentado da Universidade Estadual do Ceará (Uece), com rendimento bruto nesse mês de R$ 89,4 mil, e uma pensionista civil da Ematerce, que recebeu salário bruto de R$ 91,8 mil.
Conforme os dados do Portal da Transparência de março de 2024, muitos servidores receberam dinheiro extra relacionado a valores salariais por decisão judicial – o que foi o caso dos analisados pela reportagem, o que inflou resultados mensais e fez com que esses inativos do serviço público recebessem valores acima do “teto”.
O servidor aposentado da Uece recebeu em abril um valor bruto 44,3% superior ao teto do Governo do Estado. Por conta disso, houve um desconto equivalente a 15,2% como “abatimento em função do teto constitucional”.
Já a pensionista ligada à Ematerce recebeu no mesmo mês um valor bruto 43,2% superior ao teto do estadual. Sendo assim, o desconto foi de 52%.
Técnico da ativa da Ematerce superou em 256% o teto do Governo do Estado no último mês, período em que saiu de férias, recebendo valores extras devidos. Apesar da situação, o servidor não recebeu qualquer “abatimento em função do teto constitucional”.
Já o rendimento bruto do procurador da PGE superou em 253% o teto do STF. Por isso, recebeu cobrança de 8,59% sobre o salário bruto como “abatimento em função do teto constitucional”.
Vale destacar que três dos quatro casos de salários pagos representam superações extraordinárias do teto do funcionalismo estadual, seja por decisões judiciais para o caso dos inativos, ou de férias no caso do servidor da Ematerce. Nos demais meses anteriores, os proventos e salários pagos ficaram abaixo do limite.
Apenas no caso do servidor da PGE, apesar das férias neste mês de abril, há uma sequência de pagamentos acima do teto do STF nos demais meses do ano. Ainda assim, a cobrança do “abatimento em função do teto constitucional” permanece proporcionalmente similar ao observado neste mês.
Ainda em resposta ao O POVO, a PGE não respondeu sobre o caso de servidores que não tinham descontos mesmo com valores salariais brutos acima do teto, além dos casos que superaram o teto por remunerações não consideradas para a cobrança, como os de decisões judiciais.
Projetos contra supersalários
Para resolver essa questão existem duas propostas em tramitação no Congresso. Um é projeto de lei (PL 449/2016/PL 6.726/2016) que ataca os supersalários, enquanto a outra frente é mais ampla, a reforma administrativa.
Custo da folha de pagamento estadual salta nos últimos dois anos
O crescimento do custo com folha de pagamento tem sido significativamente alto nos últimos anos em meio às convocações de novos servidores. Esse movimento tem impacto na folha do Estado, que cresceu R$ 600 milhões em um ano até março.
Somente na área da Saúde, o governador Elmano de Freitas (PT) convocou no ano passado 2 mil novos servidores aprovados em concurso realizado em 2021.
Para 2024, 2025 e 2026, pouco mais de 3 mil novos servidores devem ser incluídos no serviço público nesta área. Na educação, outros 648 profissionais foram convocados no fim do ano passado.
Para demonstrar o cenário, no início do segundo governo Camilo Santana, em 2019, o número de servidores do Estado era de 149,4 mil, enquanto o gasto do Tesouro com salários chegava a R$ 686,1 milhões – tendo por base o mês de março de 2019.
Em março de 2020, o número de servidores ativos aumentou para 151,9 mil. Já os gastos do Estado com salários chegaram a R$ 743,2 milhões. Avanço de 8,3% no comparativo.
Quatro anos depois, no início do governo Elmano, o cenário da folha de pagamentos dos servidores estaduais era diferente.
O número de ativos chegou a 152,7 mil, com custo mensal de R$ 1 bilhão. O salto no custo mensal para o Tesouro Estadual chega a 45,75% comparando 2019 com 2023.
E quando comparado o custo da folha em março de 2023 e março de 2024 – quando pagou-se R$ 1,61 bilhão em salários – o crescimento de custo com folha de pagamentos foi de 61%.
Entre 2021 e 2024, folha de pagamentos da Prefeitura subiu R$ 150 milhões
O valor da folha de pagamentos da Prefeitura de Fortaleza saltou de R$ 332,75 milhões para R$ 484,6 milhões entre o fim de 2021 e março de 2024.
Esse movimento do custo da folha salarial representa um aumento de 45,6% em período de pouco mais de dois anos.
Conforme dados da Secretaria Municipal do Planejamento, Orçamento e Gestão (Sepog), no mesmo período, o número de servidores municipais na ativa subiu de 34,6 mil para 37 mil.
Até março passado, estavam registrados na folha de pagamentos do Município, 14,2 mil servidores inativos, 3,5 mil pensionistas, além dos 37 mil ativos.
No caso da Prefeitura, o aumento da quantidade de servidores da ativa está relacionado a uma série de ingressos de aprovados em concursos públicos na gestão municipal.
Em 2022 e 2023, o Instituto José Frota (IJF) recebeu 471 novos servidores estatutários de nível superior. À mesma época, outros 121 foram convocados pela Secretaria Municipal de Saúde (SMS).
Em janeiro de 2023, a Prefeitura também chamou 1.920 professores, no que foi considerado até então o maior concurso para magistério na história do Município. Conforme a Sepog, somente neste caso houve incremento de R$ 16,6 milhões em pagamentos mensais de salários.
No ano passado, ainda entraram no serviço público 50 novos auditores e analistas fiscais. A gestão municipal ainda destaca que além do ingresso de novos servidores também deve ser considerada no cálculo a implantação de progressões e promoções para os servidores, conforme seus Planos de Cargos, Carreiras e Salários (PCCs).
No que se referem aos aumentos salariais entre 2021 e 2023, a Sepog enfatiza que, no primeiro ano da série, não houve reajuste por conta da pandemia.
Já em 2022, a Prefeitura fez a “reposição integral” da inflação, equivalente a 11% no reajuste geral. Em 2023, a inflação foi novamente reposta, em 5,79%.
TCE investiga Fortaleza e outras 4 prefeituras por salários acima do teto
Órgão de controle responsável pela fiscalização do Estado e municípios, o Tribunal de Contas do Estado do Ceará (TCE) tem fechado o cerco sobre as gestões que são suspeitas de descumprir o teto do funcionalismo. Total de cinco prefeituras, inclusive a de Fortaleza, são alvos.
Em 2023, foram realizadas cinco inspeções relacionadas a essa questão. Todos os entes fiscalizados foram escolhidos a partir de critérios de risco e materialidade, a partir de dados informados pelos próprios jurisdicionados.
Assim, um total de cinco prefeituras são alvos de processos por conta de uma série de irregularidades nas folhas de pagamento. São elas: Iguatu, Tauá, Tamboril, Quixadá e Fortaleza.
“O TCE tem intensificado os trabalhos de fiscalização no sentido de identificar possíveis descumprimentos do teto remuneratório e exigir sua regularização”, diz em nota.
Um dos salários acima do teto constitucional na folha de pagamentos da Prefeitura de Fortaleza foi o de uma servidora que recebia da Procuradoria Geral do Município (PGM).
Conforme O POVO observou na folha do último mês de março, a servidora recebeu um salário bruto de R$ 77,1 mil. Após os descontos, a procuradora ficou com R$ 52,6 mil.
Confrontada sobre esse caso, a Sepog informou que a servidora em questão representa a Prefeitura em Brasília, acompanhando casos que envolvem o Município no STF e no Superior Tribunal de Justiça (STJ). Por isso, recebe auxílio moradia de R$ 14,4 mil e que se enquadra como ajuda de custo.
Ainda sobre o caso, enfatiza que no mês de março a servidora saiu de férias, por isso os valores foram mais altos. A gestão municipal ainda esclarece que, do salário da servidora, mensalmente é abatido R$ 4 mil, “que é a diferença entre sua remuneração fixa (R$ 48 mil) para o teto do STF (R$ 44 mil)”.
Sobre o processo em tramitação no TCE, a Prefeitura responde: “Em novembro de 2023, a Prefeitura retornou todas as informações solicitadas pelo TCE, esclarecendo as situações dos dados contidos nos contracheques dos servidores municipais mencionados no processo em análise.”
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