Em meio à tragédia que assola o Rio Grande do Sul e assombra o País inteiro, o Ministério Público do Estado lançou mão de diferentes frentes para atender demandas sociais e enfrentar a desinformação e uma onda de PIX ‘fajutos’ criados por criminosos para captar doações que deveriam cair na conta do governo estadual. Nesses dias de pânico que se apossou de Porto Alegre e de grande parte do interior, o MP fechou parceria com redes sociais, passou a transmitir apelos de vítimas aos prefeitos das cidades inundadas, acompanha a rotina dos abrigos para onde é levada a multidão de desalojados e planeja como contribuir com a reconstrução do Estado. Em outra ofensiva, investiga abusos e políticas públicas que ‘há muito tempo não funcionavam’.
Em entrevista ao Estadão, o procurador-geral de Justiça Alexandre Saltz destacou problemas que estão ligados à calamidade e que, segundo ele, já eram alvo de apuração do Ministério Público. Ele frisa que a instituição acompanha ‘serviços públicos que estão deficientes ou que não funcionaram como deveriam, como os componentes da drenagem urbana e a atuação das defesas civis’. “Não estamos investigando pessoas, mas fatos”, ressalta o procurador.
“Grande parte dessas questões que agora afloraram já eram objeto de investigação do Ministério Público. Há muito tempo essas políticas que não funcionavam, políticas de saneamento, políticas de gestão de resíduos, políticas urbanas, de moradia, tudo isso já era investigado pelo MP”, afirma Saltz.
O chefe do Ministério Público faz um desabafo. “Só que sempre o MP esbarrava na questão política, na questão da decisão do gestor político. Eu imagino que essa catástrofe toda mostrará para essas pessoas que aquilo que o MP já aponta há muito tempo é uma realidade e tem que ser enfrentada.”
À margem da grande mobilização das Promotorias, há apurações específicas. Uma delas, em parceria com a Meta, visa a derrubada de publicações com desinformação nas redes sociais. Também estão na mira dos promotores preços abusivos de água e combustível, abusos sexuais em abrigos que se formaram no Estado e decretos de calamidade por municípios que não foram atingidos gravemente pelas fortes chuvas, mas que se declararam nessa situação supostamente em busca de recursos do Estado e da União.
Outra investigação pode resultar na responsabilização civil e criminal de criadores de PIX ‘fajutos’. A suspeita do MP é que fraudadores estão fazendo uso da logomarca do governo do Estado para arrecadação de doações em dinheiro. Os promotores já requereram o bloqueio de 30 chaves PIX. A medida foi acolhida pela Justiça.
O procurador-geral aponta que a prioridade do Ministério Público é dar vazão a uma sucessão de demandas que surgem dia a dia. Não há rotina. “Estamos todo dia aprendendo. A partir da necessidade do dia anterior, nós vamos planejando no dia seguinte”, indica.
A instituição participou diretamente de operações de resgate de vítimas. O prédio atualmente usado pelo órgão – sua sede em Porto Alegre também foi inundada – virou um centro de doações. O MP se engajou em comitês de crise e transmite demandas prementes da população a prefeitos e vereadores.
Saltz destaca que sua instituição se mobiliza para a reconstrução do Estado, em parceria com o Ministério Público Federal. Nessa grande empreitada, prioriza segurança pública e os abrigos, inicialmente. A força-tarefa vai cobrar a atuação de gestores públicos.
O procurador chama a atenção para a ‘falta de coordenação’ sobre os abrigos espalhados pelo Estado. Ele reforça a necessidade de políticas para o tema e aponta uma constatação de que o poder público não chegou aos alojamentos instalados a toque de caixa. “Nem a União, nem o Estado e muito poucos municípios estão atendendo o que precisa ser atendido nesses abrigos”, adverte.
Leia a íntegra da entrevista de Alexandre Saltz ao Estadão:
ESTADÃO: Quais as principais ações do MP em meio à emergência?
ALEXANDRE SALTZ: Desde o primeiro momento, quando as águas começaram a subir, estamos atuando. A nossa sede inundou também, mudamos para outro prédio do MP em Porto Alegre e criamos um comitê de crise. Chamamos todos os colegas disponíveis para trabalhar e estamos com algumas frentes. A primeira é a participação nos comitês criados pelo governo federal e pelo município e devemos participar também do Estado. Temos procuradores e promotores que estão ali para encurtar o caminho da tomada de decisões, porque o MP recebe muitas demandas e, grande parte delas, necessita de uma resposta que tem que ser dada pelo poder público. Assim, fazemos com que aquela necessidade chegue logo à pessoa que pode decidir e fazer com que aquilo que está sendo demandado se concretize.
O MP tem muita capilaridade no Estado e as pessoas têm uma confiança na instituição, trazendo todo tipo de pedido. Por exemplo, está faltando remédio em tal hospital, alimentação em tal abrigo. E aí levamos essas notícias para quem pode decidir e tomar a melhor providência no menor tempo.
Também criamos uma força-tarefa para visitar todos os abrigos criados em Porto Alegre e na região metropolitana. Para isso desenvolvemos um aplicativo em parceria com o pessoal da Microsoft que nos dá uma boa fotografia do local e cria base de dados em relação às necessidades daquele local de atendimento. Ele foi criado em uma hora e registra a realidade dos abrigos que são visitados. A partir daí temos um diagnóstico das demandas. Estamos fazendo essas visitas diariamente e o resultado tem sido muito bom. Conseguimos identificar as necessidades daqueles locais e levar uma resposta adequada, inclusive com nossos meios próprios. O nosso prédio virou um centro de doações – caminhões com água, roupa, alimentos doados por particulares. E aí nós acabamos direcionando isso para aqueles locais que precisam e para atender as demandas que são identificadas pelo nosso pessoal nessas visitas aos abrigos. Nos primeiros dias também usamos nosso pessoal para ajudar nos resgates de integrantes do Ministério Público e de pessoas da sociedade de uma maneira geral.
ESTADÃO: Quais iniciativas foram tomadas para combater as fake news?
ALEXANDRE SALTZ: Nós criamos uma força-tarefa para combater as fake news porque elas têm um efeito muito devastador neste momento. Fizemos uma parceria com a Meta para derrubar postagens na medida que elas acontecem.
Notificamos a Meta quanto ao que identificamos como uma fake news e a empresa imediatamente derruba aquela notícia. Não o perfil. Vivemos uma situação de calamidade pública. A notícia falsa cria uma sensação de insegurança, dificulta o uso dos próprios recursos do Estado, que já são limitados nessa hora, gera pânico, nesse serviço. Uma série de efeitos nocivos. Precisamos combater isso, evitando que ela se propague, neste momento. Claro que aquelas situações que são mais agudas nós vamos avaliar depois, juridicamente, se ela tem repercussão seja cível ou seja criminal. Mas isso é num momento futuro.
Muitas dessas fake news estão relacionadas à arrecadação por PIX que pessoas criaram usando a logomarca do Estado. Já mapeamos algumas dessas contas e vamos tomar as providências. Já fizemos até algumas ações para buscar o bloqueio desses valores e agora vamos buscar a responsabilização.
Foram 30 chaves bloqueadas, mas o valor não sabemos ainda porque a gente pediu o bloqueio da conta inteira. O quanto foi apurado não sabemos ainda. E já teve decisão da Justiça.
ESTADÃO: Há mais iniciativas?
ALEXANDRE SALTZ: Estamos atuando também em relação à fiscalização dos municípios que decretaram calamidade pública quando calamidade pública não existia naquela cidade. Isso já fez com que alguns municípios revogassem os decretos que haviam criado.
Através do Mediar, que é o nosso núcleo de autocomposição, estamos tratando de questões como desocupação do maior abrigo do, que fica em Canoas. O poder público não chegou nesses abrigos ainda. Isso é uma constatação. Nem a União, nem o Estado e muito poucos municípios estão atendendo o que precisa ser atendido nesses abrigos.
ESTADÃO: Sobre a questão de o poder público não ter chegado aos abrigos, essa constatação já foi levada aos governos? Vê perspectiva de melhora?
ALEXANDRE SALTZ: Isso é uma política pública, não cabe ao MP. Quem tem que decidir sobre uma política de acolhimento para os abrigados é a União, o Estado e os municípios. Percebemos que não há uma coordenação específica em relação a isso. Pode ser uma consequência do próprio modelo federativo, em que todos os órgãos têm competências e atribuições próprias. Então, está faltando uma coordenação. Porque é um evento muito inusitado que está acontecendo aqui, ninguém estava preparado ou organizado para isso, mas a gente espera que essa situações, que já foram verificadas nesses primeiros 14 dias, que vão ajudar na correção de rumos. Precisa de política pública para esse tipo de atendimento e quem faz a política pública não é o MP. Estamos levando essas notícias para eles na medida em que os fatos chegam ao nosso conhecimento.
ESTADÃO: Que outras medidas foram tomadas pelo MP?
ALEXANDRE SALTZ: Temos acordos com as empresas concessionárias de água do Estado e a do município de Porto Alegre para garantir o não pagamento dessas tarifas por 60 dias, justamente para dar um fôlego às pessoas que foram de alguma maneira atingidas em grande parte do Estado. Estamos fiscalizando o aumento do preço de combustível e o do preço da água. Criamos um e-mail (precosabusivos@mprs.mp.br) justamente para coibir isso. Estamos recebendo apoio de MPs de outros Estados, especialmente Santa Catarina, que nos mandou policiais do Gaeco para ajudar e Minas Gerais que mandou dois bombeiros especializados em resgate e operações de crime. Nos reunimos com o Ministério Público Federal e vamos criar uma espécie de força-tarefa para tratar da reconstrução do Estado. Temos preocupação já com dois focos: segurança pública e os abrigos. As pessoas estão em abrigos provisórios, escolas, creches, universidades, igreja, só que as escolas têm que voltar a funcionar, os voluntários têm que voltar às suas atividades e o Estado e a União vão ter que assumir esse protagonismo, criando abrigos temporários para essas pessoas até que as casas sejam reconstruídas. Em relação a isso também nós vamos ter que conversar um pouco sobre ocupação em áreas de risco. Alguns locais já são conhecidos como impróprios da moradia. Temos desafios enormes pela frente, mas o nosso Ministério Público está completamente engajado no enfrentamento desse desastre climático respondendo, me parece de uma maneira muito satisfatória, aquilo que a sociedade espera da gente e vamos continuar.
Outra coisa importante é que aqui no Rio Grande do Sul existe um fundo criado pela lei da ação civil pública chamado Fundo de Reconstituição de Bens Lesados. Aqui, a gestão desse fundo é feita pelo MP por conta de uma lei estadual. Estamos usando valores desse fundo para ajudar na reconstrução do Estado em alguma medida. Já tem recurso desse fundo destinado para construção de casas em Arroio do Meio, que foi devastado pela enchente de setembro do ano passado. Agora, nós autorizamos a compra de barcos de resgate para o Corpo de Bombeiros. Quero destacar a união do Ministério Público brasileiro em torno dessa causa. O Conselho Nacional de Ministério Público editou uma recomendação para que os Ministérios Públicos do Brasil inteiro destinem recursos derivados de acordo de não percepção penal, não persecução civil e Termos de Ajustamento de Conduta para o fundo gerido pelo MP do Rio Grande do Sul como forma de potencializar o atendimento do MP brasileiro à sociedade gaúcha. Quanto aos valores destinados a gente não fala em números, mas vamos falar no retorno, à medida que essas doações do MP começarem a acontecer.
ESTADÃO: A parceria com o MPF é para pensar a reconstrução? Ou para a abertura de inquéritos?
ALEXANDRE SALTZ: Não, não é hora para burocratizar. Nos reunimos com o vice-governador e o secretário envolvido no assunto. O MP estadual e o MPF já para começar o diálogo em relação a isso. Por enquanto nós temos essa percepção a partir do que nós estamos vendo, vivendo e recebendo da sociedade. As pessoas estão preocupadas com isso (segurança e abrigos) e nós vamos levar essa preocupação para os órgãos responsáveis pela tomada de decisão.
ESTADÃO: Quantos municípios voltaram atrás na questão da calamidade?
ALEXANDRE SALTZ: Confirmado, um, por enquanto, o de Imbé. Acontece que o governo federal alterou o decreto que tinha reconhecido, o número de municípios caiu para 39, se não me engano. Agora fica fácil, porque são só 39 municípios, antes eram mais de 200. Aí, às vezes nem é má fé, às vezes é ignorância mesmo, porque as pessoas confundem situação de calamidade com situação de emergência. São coisas diferentes, o nosso papel aqui também é um papel educativo, esclarecedor, demonstrar para os municípios, o que é uma coisa o que é outra.
ESTADÃO: Quando o sr acha que o MP vai conseguir, apesar dessas ações emergenciais, começar a pensar em outras apurações, além da calamidade?
ALEXANDRE SALTZ: Nós já tínhamos criado no Ministério Público do Rio Grande do Sul, no ano passado, a partir do que aconteceu no Vale do Taquari, um gabinete especializado no acompanhamento das questões climáticas, o Gab Clima. Somos o primeiro Ministério Público brasileiro a criar um gabinete assim. Depois, Santa Catarina fez, e outros Estados seguiram o mesmo caminho. Nós já temos uma estrutura orgânica no Ministério Público que vem acompanhando a evolução das mudanças climáticas e os impactos que isso poderia causar na vida das pessoas. Isso está muito presente. Nós já temos uma curva de aprendizado em relação a isso e nos ajudou na tomada de algumas decisões. Algo que se percebeu é que nessas regiões do Vale do Taquari que foram de novo devastadas pelas águas as perdas humanas, desta vez, foram muito menores do que nas outras regiões porque a sociedade, por esse trabalho todo que vem sendo feito junto com o Ministério Público, sabe que tem que cumprir uma ordem de evacuação da Defesa Civil, sabe que tem que respeitar a cota de inundação. É um trabalho educativo. É óbvio que a partir daí nós temos assim aprendizados que vão nos levar para investir na questão educacional, na busca de parcerias com órgãos públicos e privados, na busca da melhor reconstrução para o Estado e também em algumas apurações. Não vou falar sobre responsabilidades, mas eu posso falar sobre serviços públicos que estão deficientes ou que não funcionaram como deveriam, como os componentes da drenagem urbana, a atuação das defesas civis que é algo que a gente já vem acompanhando no Vale do Taquari há bastante tempo. Eu não gosto de falar em responsabilidade. Um evento dessa dimensão não tem responsável. Todos nós somos responsáveis, porque se uma tragédia dessa se instala cada um tem uma parcela de responsabilidade sobre o que aconteceu.
ESTADÃO: Quais apurações já foram abertas?
ALEXANDRE SALTZ: Já temos a dos municípios que decretaram calamidade pública sem, de fato, estarem nessa situação. Também as das contas PIX fajutas, aparentemente fraudulentas, mais o combate às fake news, aos aumentos abusivos de preços de produtos. São efetivas essas apurações.
ESTADÃO: E as apurações sobre abusos em abrigos?
ALEXANDRE SALTZ: Sim, eventuais abusos são apurados nas visitas que nós trazemos todos os dias aos abrigos. O que aconteceu, e essa é uma triste realidade, é que aquelas formas de violência que aconteciam nas casas e que ficavam na clandestinidade porque aconteciam em um ambiente familiar elas se transpuseram para os abrigos. Isso permitiu concluir que essas situações de abuso não ocorreram no abrigo por ser o abrigo. Mas porque ali é um espaço de acolhimento, aquilo que acontecia nas casas as pessoas levaram para os abrigos. De alguma maneira isso permitiu que essas pessoas fossem identificadas e estão sendo responsabilizadas, estão presas, inclusive. O que acontece é que as pessoas que vieram para os abrigos vieram com o que têm de melhor e com o que têm de pior. Estamos atuando muito também com os órgãos de Segurança Pública que reforçaram as fiscalizações, o policiamento nos abrigos. O Estado do Rio Grande do Sul tem investido muito nisso. Vamos ter uma atuação do MP integrada com a fonte nacional de segurança, também. Estamos todo dia aprendendo e, a partir da necessidade do dia anterior, nós vamos planejando o dia seguinte. Não tem rotina. Contamos com a parceria de todos os órgãos federais, estaduais e municipais para fazer isso. Estamos cobrando o poder público a fazer isso.
ESTADÃO: O MP vai averiguar a responsabilidade dos gestores públicos por questões como drenagem e investimentos? Quando o sr acha que o MP vai conseguir se debruçar sobre essas questões?
ALEXANDRE SALTZ: Nós não vamos investigar pessoas, estamos apurando fatos. Não é investigar o A, o B, o C e o D, e sim os fatos.
ESTADÃO: Mas há uma perspectiva de quando será possível realizar essa apuração?
ALEXANDRE SALTZ: Nós já estamos fazendo isso, as promotorias especializadas já estão fazendo. E grande parte dessas questões que agora afloraram por conta do que está acontecendo já era objeto de investigação do Ministério Público. Há muito tempo essas políticas que não funcionavam, políticas de saneamento, de gestão de resíduos, políticas urbanas, de moradia, tudo isso já era objeto de apuração do MP. Só que sempre esbarramos na questão política, na questão da decisão política do gestor. Eu imagino que essa catástrofe toda mostrará para essas pessoas aquilo que o MP já aponta há muito tempo. É uma realidade e tem que ser enfrentada. E para esse enfrentamento precisará de recursos. Esses recursos têm que ser federais, porque a devastação aqui no Estado é algo que nunca se viu. O Estado e os municípios por si só não vão conseguir se reerguer, sem aporte de recursos e apoio estrutural, apoio administrativo. Já temos inquéritos instaurados, já tínhamos instaurado outros sobre alguns desses fatos antes das chuvas. A apuração está sendo feita, nós vamos diagnosticar o que está acontecendo e buscar as formas de correção.
Não é a primeira enchente em Porto Alegre, isso já aconteceu e exatamente por isso que já havia as investigações. Isso potencializa o problema. Expõe mais o problema. O diagnóstico já está sendo feito.