Publicado 23/05/2024 22:05
Foi aprovado em 21 de maio na Assembleia Legislativa de São Paulo o PL 9/2024, que institui o Programa Escola Cívico Militar no Estado de São Paulo por 54 votos a favor e 21 contrários. A mídia e boa parte das entidades estudantis e de classe estão tratando a questão somente pelo viés da política. É trazido para o debate a questão ideológica presente no bolsonarismo e combatida pela esquerda brasileira. Não que essa questão não seja necessária no debate, mas ao focar na política, desviamos o principal desse debate, a educação, a aprendizagem e a ausência da questão pedagógica, que são preocupantes. Transforma-se um assunto importante e estratégico numa guerra maniqueísta, em que o resultado está fadado a uma educação destoada do seu principal objetivo: a produção de conhecimento.
Ao que me pareceu, muitos saíram contra o projeto, mas poucos se atentaram ao conteúdo do PL nas suas minúcias, considerando que o projeto é muito pior do que vem sendo denunciado. O documento apreciado e aprovado pela Assembleia Legislativa é antecedido por uma carta do secretário de Educação Renato Feder e outra do próprio governador. Nelas, Feder e Tarcísio justificam a necessidade da instauração das escolas cívico-militares. Tanto na carta de Feder como o próprio PL se configuram em um documento claramente neoliberal, o discurso da qualidade total, da busca por resultados e do controle social, sendo esse o cerne dos textos. Numa primeira leitura, já é possível identificar isso quando notamos a prevalência da palavra gestão, administração e excelência, em contrapartida, ensino, aprendizagem quase não se fazem presente, cultura aparece uma vez e conhecimento, nenhuma. Pode parecer bobagem, mas sabemos que o discurso neoliberal dos tecnocratas da educação é recheado de jargões que usam tais palavras dentro de termos técnicos para seduzir a população.
Mais do que a implementação de escolas cívicos-militares, o PL abre caminho para a privatização da Educação, ao separar gestão administrativa do fazer pedagógico. Ora, sabemos que se tratando de educação, tudo é pedagógico, não tem como “administrar” uma escola senão pelo viés pedagógico. Numa escola tudo é pedagógico, desde o currículo até a forma como a escola será higienizada. A proposta de Tarcísio e Feder não propõem uma escola, mas uma empresa.
Na justificativa para tal conversão das escolas públicas em escola cívico-militares, apresenta-se a preocupação de melhorar a qualidade da educação e buscar a equidade, o que nos causa estranheza – se a escola proposta será de tão boa qualidade, por que então será oferecida somente nas periferias, nas regiões de alta vulnerabilidade social? O argumento apresentado é de que a escola deve atuar no enfrentamento da violência e promover a cultura da paz no ambiente escolar. Há a velha tentativa liberal de transferir para a escola a responsabilidade de solucionar todas as mazelas da sociedade capitalista. É como se a violência não fosse decorrência da falta de emprego, saúde, habitação, das desigualdades, é como se a violência fosse somente um problema de ética e moral. Para reduzirmos os índices de violência são necessários programas sociais, geração de emprego e renda. Isso sim garante o combate à violência e, consequentemente, melhores condições para o estudo, pois a violência não é criada na escola, mas se reflete nela. Escolas nesse formato em regiões periféricas são instrumentos de controle social.
O PL se configura como um claro retrocesso no debate educacional e pedagógico no Brasil. Tal organização não está prevista nem na LDB nem no Plano Nacional de Educação e não poderia, pois, as escolas cívico-militares não compactuam com os princípios que norteiam as Leis maiores da Educação, a gestão democrática, a liberdade de ensinar e aprender. A Escola Pública, depois de muita luta, segue princípios universais, que atenda a todos, com escolas cívicos-militares, que buscam pela disciplina e da hierarquização uniformizar e adaptar o estudante ao formato da escola, debate que imaginávamos já ser superado. Segundo o PL, caberia aos militares as atividades extracurriculares seguindo as diretrizes dos valores cidadãos, civismo, dedicação e honestidade, que trata de habilidades, cerceia a liberdade de ensinar e aprender, valoriza a hierarquização a obediência e não o diálogo, bem como deixa claro a vigilância.
Os inventores do projeto separam gestão administrativa do fazer pedagógico, argumentando que a matriz curricular de São Paulo não sofrerá mudanças, mas deve se adequar para a inserção de atividades cívica e de cidadania. Em outras palavras, se passará a incorporar práticas militares. É advogada a formação de pessoas capazes de exercer a cidadania a partir de uma educação de disciplina rígida, hierarquizada e autoritária, cujo modelo é voltado para práticas pedagógicas em que os estudantes são estimulados a cultivar o respeito à pátria, os símbolos nacionais, sendo incentivados a desenvolverem habilidades de liderança e competição. A questão da aprendizagem não é utilizada, o que vemos é uma visão tecnicista da educação, em que o importante é aprender a fazer e adaptar-se ao mundo desigual em que vivemos.
Outro detalhe importante ao analisarmos o projeto é a questão da democracia. Nas suas entrelinhas, as escolas cívico-militares extinguem os órgãos democráticos da Escola, como o Conselho de Escola, que aponta que a decisão da conversão da instituição de ensino ocorrerá após a aprovação da comunidade escolar, mas não cita que o Conselho de Escola é dar anuência para o governo do estado fazer consultas públicas, não deixando claro como elas serão feitas.
Por fim, decreta-se a desvalorização do professor. Os militares que assumirão as atividades extracurriculares, além dos seus salários receberão 2.5 Unidades básicas de Valor (UBV) por oito horas de trabalho. Isso totaliza R$ 5.692,50 no mês. Cumprindo uma jornada de 40 horas semanais, em 20 dias, ele vai receber mais do que o salário médio do professor, que, atualmente, por 30 dias de trabalho, está em torno de R$ 5.300.
A luta contra o PL 9/2024 deve ocorrer dentro do debate pedagógico, na defesa de uma escola democrática que preze pelos valores universais, que entenda que a função da escola é a difusão e produção do conhecimento, que compreenda que a educação é estratégica na construção de uma sociedade livre e emancipada e não a solução para as mazelas que nos afligem. Tais mazelas têm como único responsável o sistema que nos aprisionam na lógica da exploração do homem pelo homem. Somente com uma escola pública, universal, laica e democrática podermos formar cidadãos comprometidos com o bem comum e capazes de exercer a cidadania no seu sentido pleno e não no sentido burguês que nos reduz a pessoas adaptáveis à lógica do capital.
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