Às portas das eleições municipais de outubro, um olhar para o último pleito, ocorrido há quatro anos, revela que as mulheres representaram apenas 34% do total das candidaturas no Brasil e só 16% do total de vereadores eleitos no país. Essa é apenas uma informação entre uma miríade de dados e relatos recolhidos e analisados pelas pesquisadoras Débora Thomé e Malu Gatto em “Candidatas: Os primeiros passos das mulheres na política no Brasil”, publicação da editora da Fundação Getúlio Vargas (FGV) que será lançada nesta segunda-feira (29/7) em Belo Horizonte em evento na Savassi, Região Centro-Sul da capital mineira (veja serviço completo no fim da matéria).
A obra reúne entrevistas com 102 candidatos, quase 80% mulheres, nas eleições de 2020 e 2022, portanto pleitos municipais e gerais. Ao longo do livro, as autoras miram e acertam em uma abordagem que pretende compreender aspectos históricos da representação feminina na política brasileira aliada ao contexto percebido pela centena de entrevistas e anos de pesquisa sobre o tema.
“Candidatas” começa com dados que ilustram a sub-representação feminina em cargos eletivos e faz uma reconstituição ampla do cenário ao lembrar a história desde Isabel Dillon, dentista baiana que inaugurou os passos femininos na república brasileira ainda em 1890. Ao longo do livro, o destaque volta-se para as entrevistas realizadas em uma análise abrangente que discute o tema a partir do primeiro interesse despertado nas mulheres que se enveredam pela política eleitoral, passando pela escolha e filiação ao partido, os imbróglios da campanha, a reação ao resultado das urnas e a decisão pela permanência ou desistência da vida neste cenário.
Thomé é doutora em ciência política pela Universidade Federal Fluminense e pesquisadora de pós-doutorado no Centro de Política e Economia do Setor Público (Cepesp) da FGV. Gatto é doutora em ciência política pela University of Oxford e professora na University College London.
Em entrevista ao Estado de Minas, Gatto falou sobre o processo de pesquisa e escrita do livro. A professora analisou os principais percalços que motivam a sub-representação feminina no cenário político nacional à luz do trabalho publicado em “Candidatas: os primeiros passos das mulheres na política do Brasil” e discutiu o caminho já percorrido e a trilha ainda a ser pavimentada para um contexto mais coerente e justo com a divisão de gênero observada no país.
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ENTREVISTA
Como foi a escolha do tema e do método de abordagem do livro, que passa tanto por uma questão da história da representação das mulheres na política brasileira como de todo o trajeto desde o interesse pela candidatura até o resultado eleitoral?
Tanto eu quanto Débora temos uma bagagem de estudar a sub-representação das mulheres na política. Esse livro, na verdade, usa as entrevistas como uma fonte de dados principal, mas ele também está trazendo uma bagagem mais ampla da nossa experiência. Essas entrevistas são colocadas no contexto da literatura acadêmica do que já se sabe de forma mais ampla sobre os motivos da sub-representação da mulher no Brasil e no mundo. Assim, nós tentamos explicar não somente o histórico disso, mas também as instituições, as regras eleitorais que importam para a representação.
Uma das coisas que a gente percebeu é que existe muito pouco conteúdo sobre candidatos de uma forma geral e sobre candidatas, de uma forma específica, ainda menos. A Ciência Política trata bastante sobre quem são os eleitos, até por uma questão de mais fácil acesso, você consegue ter acesso ao ao contato do gabinete dessas pessoas, por exemplo, mas tem muito pouco sobre candidatos. Dado que as mulheres são ainda mais sub-representadas que os homens, não falar sobre as candidatas significa que as vozes dessas mulheres não estavam sendo ouvidas, na verdade. Porque elas já são minoria entre os eleitos e ainda mais entre os candidatos e aí o funil vai afunilando ainda mais. Então se a gente foca apenas nos eleitos, a gente está ouvindo muito pouco sobre essas mulheres e quem são elas. Esse daí foi um dos motivos.
Outro motivo é que há no mundo pouca coisa parecida com esse livro, um material que retrate todas as etapas do processo. Nós olhamos desde o momento que as mulheres decidem que querem ser candidatas, o que as inspirou e vamos disso daí para como elas escolhem os partidos, passando pela parte da campanha, em que elas são muitas vezes invisíveis para os eleitores.
O livro aborda os relatos de percepção de violência política de gênero sob uma perspectiva diferente da que vemos em documentos como o Observatório da Violência Política, por exemplo. Como essa abordagem ajuda a sofisticar essa percepção?
Eu sempre gosto de pensar em dados quantitativos e dados qualitativos como complementares, eles captam coisas diferentes. O que os dados qualitativos nos permitem é analisar e ter a percepção das candidatas e dos candidatos com relação às experiências do que elas consideram violência. Quando se pega dados, por exemplo, do Observatório, existe uma equipe técnica de estudiosos que define quais são os critérios entendidos como violência política. E quando a gente está fazendo as entrevistas, a gente não define para essas mulheres. Estamos perguntando se elas sofreram algum tipo de violência política e pedindo para que elas mesmas nos expliquem.
Uma coisa que a gente percebeu é que as mulheres já entendem a violência como algo que é parte da vida delas na política. Outro ponto que me chamou bastante atenção é que os homens normalizam mais a experiência com a violência. Apesar de termos entrevistado poucos homens, percebemos que muitos relataram ter sofrido violência, mas que isso faz parte da vida política. Existe um viés de gênero que pesa aqui também que aponta que para os homens é difícil assumir uma violência, pois isso os pode colocar num lugar de fragilidade que não está compatível com as expectativas do exercício de masculinidade na política.
O livro destaca que o principal fator que viabiliza eleições é já estar eleito ou, de alguma maneira, no poder. No caso das mulheres essa regra se aplica de uma forma diferente. O que motiva esse percalço?
Em inglês esse fenômeno é chamado de leaky pipeline, algo como cano furado numa tradução literal. Ou seja, já é difícil trazer as mulheres para a política e é difícil fazê-las permanecer. O maior preditor de sucesso eleitoral é a incumbência, ter pessoas já eleitas, já com capital, experiência e reconhecimento. isso faz com que elas tenham mais eh, chances eleitorais numa próxima eleição. Mas o que a literatura também mostra é que as pessoas de primeira viagem tendem a ter mais dificuldade do que pessoas de segunda e terceira viagem. A própria experiência do fazer campanha, mesmo que você não seja eleita da primeira vez, é importante para aprender sobre as dinâmicas da campanha eleitoral e começar a conhecer o seu eleitorado, ser reconhecida por ele e ganhar força dentro do partido também.
Então, se estamos perdendo mulheres a cada vez que elas se apresentam pela primeira vez e estão começando a ganhar capital, temos que recomeçar o ciclo a cada eleição. A cada recomeço tem uma perda grande de capital. Muitas mulheres descrevem terem sido traídas pelos partidos, elas usam esse termo mesmo, de não terem recebido o apoio prometido ou serem usadas como candidatas laranja. Ou então descrevem experiências negativas com o eleitorado, experiências negativas sobre a competição a nível de desigualdade e não somente por uma questão de é má distribuição de recursos, mas também porque os candidatos já mais fortes, já eleitos ou que já tem maior maior força nos seus locais de votação usarem de práticas que as mulheres muitas vezes não querem ou não podem usar, como a compra de votos, o que foi relatado por mulheres de todo o Brasil. Essas experiências negativas acabam também por desestimular a manutenção na política.
Mas uma coisa que eu queria pontuar é que muitas delas falam que não sabem se querem continuar na política eleitoral, mas geralmente contam sobre como querem continuar na política fora de um cenário formal. Que querem seguir em movimentos sociais ou até que elas querem continuar na política eleitoral, mas não como candidatas, mas em gabinetes, ou ajudando novas candidatas, por exemplo.
Vocês mostram no livro que existe uma disparidade entre o nível de escolaridade entre homens e mulheres que se candidatam e uma diferença ainda maior entre quem consegue se eleger, indicando mulheres com mais estudo. Como vocês avaliam essa situação?
Existe uma situação para definir se essa é uma questão de demanda ou de oferta. Dado que as mulheres tendem a ser socializadas também para não se enxergarem como lideranças políticas, uma das explicações para que elas tenham maior nível educacional do que os homens quando se tornam candidatas e são eleitas é que elas só se sentem qualificadas para exercer os cargos quando têm maior nível educacional. Essa seria uma questão de oferta.
A outra questão é de demanda. Ou seja, também é possível que o eleitorado e, principalmente os partidos, só percebam capital político nas mulheres que têm maior educação formal. Então é muito difícil separar essas duas coisas, se são as mulheres que estão sendo se apresentando em níveis diferentes dos homens ou se são os partidos e os eleitores que estão percebendo as mulheres e os homens de forma diferente.
Débora Thomé e Malu Gatto reuniram anos de pesquisa e mais de cem entrevistas para escrever análise da sub-representação feminina na política brasileira desde os primeiros estágios da particiapação eleitoral
Simone Marinho / Divulgação
Quando vocês apresentam uma abordagem cronológica da participação feminina na política brasileira, tratam sobre as cotas de gênero e como elas foram se modificando até o cenário de hoje. O que temos ainda é insuficiente para uma representação justa no cenário eleitoral, mas quais pontos você considera importantes e o que ainda deve ser feito?
As cotas de gênero foram adotadas pela primeira vez para as eleições municipais de 1996 e depois para as nacionais e estaduais de 1998. Desde então houve mudanças na legislação que tornaram as cotas um pouco mais fortes. Vale destacar que o Brasil adotou essas cotas mais ou menos ao mesmo tempo que vários outros países da América Latina. A Argentina foi a primeira da da região a adotar essas cotas em 1991, e vários outros países o fizeram nos anos seguintes. Então o Brasil estava em um momento parecido com outros latinoamericanos. Acontece que, desde então, vários desses países mudaram radicalmente a composição dos seus parlamentos. Costa Rica, Bolívia, México e a própria Argentina têm hoje mais de 40% de seus parlamentos ocupados por mulheres e o Brasil está lá atrás, como um dos piores do mundo neste sentido.
Quando a cota foi adotada para as primeiras eleições, os partidos não respeitavam essa a legislação. Um dos problemas era a linguagem da lei, que dizia que era preciso reservar 30% das candidaturas para mulheres. Dado que no mesmo momento, na reforma eleitoral, aumentou-se a proporção de candidaturas que os partidos podiam nomear, eles podiam simplesmente deixar várias vagas em aberto, não nomear ninguém para elas e ainda assim cumprir com a cota. Em 2009 houve uma minirreforma eleitoral e aí foi mudada a linguagem, que passou de ‘reservar’ para ‘preencher’. A partir daí, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e os Tribunais Regionais Eleitorais (TREs) começaram a fiscalizar o cumprimento da cota e ocuparem 30% das chapas com mulheres. Mas a questão é que o Brasil tem um sistema chamado proporcional de lista aberta e, nesse sistema, ter acesso a recurso é muito importante porque você precisa estar visível para o eleitor e conseguir ter mais votos dentro do próprio partido. Nesse contexto, o acesso ao recurso é fundamental para a viabilidade das candidaturas.
Em 2018 foi a primeira vez que houve, por decisão judicial, a reserva de 30% do financiamento de campanha para as mulheres. Ainda assim, já sabemos a história. Os partidos também novamente encontram brechas no texto e concentram essa verba nas candidaturas de homens através de artifícios como santinhos divididos com candidatos e candidatas, a nomeação de vices mulheres nas disputas por cargos majoritários, dentre outros.
O que pode ser feito é, de fato, colocar regras mais fortes, que façam com que a distribuição de recursos gere realmente um abastecimento para a candidatura de mulheres de forma proporcional e, de alguma forma, garanta sua viabilidade eleitoral. Uma medida que funcionaria sem brechas é a reserva de assentos para as mulheres. Ou seja, garantir um certo percentual para que as mulheres pudessem enfim estar representadas em uma parcela pré-determinada, porque como você mesmo falou, as cotas atuais, elas servem como um teto para os partidos. Eles não nomeiam para além dos 30%, mesmo aqueles de esquerda. Isso tem muito a ver com a questão de que tanto os homens de esquerda como os de direita teriam que abrir mão dos seus espaços para colocar mais mulheres
SERVIÇO
Candidatas: os primeiros passos das mulheres na política do Brasil
Malu Gatto e Débora Thomé
200 páginas
R$52,00
FGV Editora
Lançamento
Segunda-feira (29/07)
Livraria Quixote – Rua Fernandes Tourinho, 274, Savassi, Belo Horizonte