Por Ivony Lessa – Não sou uma fundamentalista do caráter antropogênico das mudanças climáticas. Acredito verdadeiramente que a ciência não dá conta de sentenciar sobre os mecanismos que afetam o clima do planeta e do universo. Digo “ciência” e não “a ciência atual”, porque se trata de matéria humana e ideologicamente encaminhada a resultados. A escolha e observação de dados respondem a hipóteses formuladas com base nas mais diversas e criativas teorias – ou em alguma teoria instituída e dominante.
Ao mesmo tempo, acredito que as hipóteses sobre as mudanças climáticas poderiam ser levadas mais a sério porque, afinal de contas, é o que nós temos como horizonte de ação.
2023 foi um ano muito quente no mundo. As chuvas no Brasil, país mormente subtropical, deixaram 200 mortos, meio milhão de desabrigados e causaram prejuízos da ordem de R$25 bilhões.
De acordo com o Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden), os eventos climáticos extremos vêm se tornando cada vez mais frequentes. E também letais e caros, considerando deslizamentos de terra, inundações, enxurradas, erosão de margem fluvial, alagamentos, granizo, tornados e chuvas intensas. Somente em 2023, foram reconhecidos 1.132 desastres do tipo.
Na outra ponta, a Amazônia sofreu uma seca severa, com seus rios atingindo os níveis mais baixos em 120 anos. Segundo estudo publicado na revista Nature, é provável que a floresta atinja um estado de colapso irreversível até 2050, perdendo características funcionais como a produção de chuvas e a absorção de gás carbônico.
Abordagem baseada na reação
O setor que mais acumulou prejuízos foi justamente a agricultura, que movimenta a frente anti-ambientalista no Brasil: cerca de R$10 bilhões em perdas no ano passado. Um prejuízo não contabilizado nessa soma é a chegada cada vez mais tardia da temporada chuvosa, atrasando o plantio da soja que, por sua vez, atrasa ou até inviabiliza o plantio da segunda safra, de milho, ambos cultivados em áreas amazônicas.
No ano passado, cerca de 40% das emergências climáticas ligadas a chuvas se deram no estado do Rio Grande do Sul (RS), que tem fronteira com Uruguai e Argentina. A abordagem nacional baseada na reação, e não na preparação, não ajuda a incrementar a resiliência dos municípios às mudanças: 2024 trouxe as piores catástrofes climáticas já registradas no sul do Brasil.
Desde o final de abril, as chuvas fortes afetaram 70% das cidades do estado. Contabilizam-se 90 mortes confirmadas, mais de uma centena de desaparecidos, mais de 100 mil pessoas desalojadas, aulas suspensas em todo o território.
Com tudo isso, uma das primeiras ações do governador do RS Eduardo Leite, que reduziu o já irrisório orçamento da Defesa Civil de R$ 1 milhão para R$ 50 mil durante seu mandato, foi postar um tuíte demandando a ajuda do presidente Lula, nominalmente, para a contenção da crise.
No Brasil, chamamos esse tipo de movimento de “vacina”: quando um imputável rapidamente aponta o dedo para outra pessoa, gerando uma crise de interpretações e caminhos viáveis para seus defensores, ao mesmo tempo em que afasta o foco real do problema.
O motor da crise e a crise como motor
Dentre as diversas utilizações políticas da tragédia, que fabricam seu espectro no metaverso das redes sociais, uma chama a atenção pelo descaramento. (Convenhamos que o descaramento é elemento quintessencial das manifestações da extrema direita no Brasil mas, ainda assim, há picos dignos de menção.)
Vestindo saquinhos plásticos nos sapatos para protegê-los das águas que corriam pela rua/cenário, o deputado federal Luciano Zucco gravou um apelo público pedindo doações aos atingidos pelas chuvas no RS. Para doações em dinheiro, recomendou o “Instituto Harpia” – que não se perca pelo nome que, afinal, também batiza uma ave de rapina brasileira.
Em suas redes sociais, o ex-deputado federal conhecido como Major Vítor Hugo solicitou doações para o mesmo instituto. Falou em nome dos atingidos, explicitando que a organização doaria R$ 5 mil de seus próprios cofres para mitigar a tragédia – o equivalente a 915 euros.
No futuro, a impossível contabilidade não atestará quanto dinheiro vai morrer na conta da Harpia e quanto se transformará de fato em algum auxílio. Mas a promoção da organização e a coleta de dados dos doadores é segura.
O Instituto, estabelecido manifestamente para “criar lideranças de direita em todo o Brasil”, tem Jair Bolsonaro como presidente de honra vitalício. E a missão de defender ideais liberais econômicos e a propriedade privada, além de elaborar uma “Nova Constituição Federal”. Associou-se ao movimento “Invasão Zero”, que defende interesses ruralistas, rematando o ciclo cármico.