Não existe intelectual sem posição política, por Luis Felipe Miguel
Desde que o cerco à inteligência se agravou no país, uma das principais acusações feitas a intelectuais, cientistas, pesquisadores e professores é serem “partidários”.
É a baboseira do “Escola Sem Partido”. É a ficção de uma educação e de um pensamento sem senso crítico.
Anos atrás, quando o ministro da Educação de Temer tentou censurar uma disciplina minha na UnB, um dos argumentos – repetido por seus sabujos na imprensa, de Augusto Nunes a Reynaldo Azevedo – é de que eu era “petista”.
Na verdade, nunca fui petista. Não posso me classificar nem mesmo como “simpatizante”. Encerrei minha fase de militante partidário ainda jovem, há mais de 30 anos, quando o velho PCB decidiu se degradar em PPS.
Mas poderia ser. Tenho vários colegas que são filiados ao PT ou a outros partidos e nem por isso deixam de ser pesquisadores de primeira linha.
Florestan Fernandes foi, provavelmente, o maior cientista social da história do Brasil. Nos últimos anos de vida, ajudou a fundar o Partido dos Trabalhadores e chegou a exercer dois mandatos de deputado federal.
Poderia citar inúmeros outros nomes – do PT, do velho e do novo PCB, do PSOL, do PDT, do PSDB…
(Pensei em citar algum intelectual do PL, mas fiquei em dúvida entre Neymar Jr. e Andressa Urach, então desisti.)
Creio que todo intelectual toma partido. Isso é básico, faz parte do metiê. Afinal, o intelectual produz um escrutínio crítico sobre o mundo que o cerca.
Quando diz que não toma partido, ele de fato está endossando a ordem existente. Toma, sem assumir, o partido do conservadorismo.
Mas é outra coisa se integrar organicamente a uma estrutura partidária. Pierre Bourdieu dizia, com autocrítica, que os intelectuais resistem a isso até por uma questão de vaidade: tendem a achar seu pensamento tão especial, tão único, que não pode ser limitado por nenhuma lealdade.
Talvez. Mas a independência do trabalho intelectual é de fato uma questão.
Se o partido exige alinhamento total a cada uma de suas diretrizes, mata o intelectual. Mas, se a carteirinha de filiado é só um bibelô, qual o sentido?
A absoluta “independência”, por outro lado, só pode existir com um descompromisso que se aproxima do ceticismo e deságua na passividade.
Sartre desenvolve bem esse dilema no romance A idade da razão. O protagonista é o protótipo do intelectual pequeno burguês cioso de sua liberdade, mas incapaz de fazer qualquer coisa com ela. Brunet, o militante comunista, o confronta: “Você renunciou a tudo para ser livre. Dê mais um passo, renuncie à própria liberdade. E tudo te será devolvido.”
Será?
Há muito terreno entre seus dois polos. Florestan não perdeu um milímetro de sua estatura intelectual por participar do PT – e ninguém colocaria em dúvida seu petismo por ele ser o pensador que era.
A acusação contra os intelectuais que tomam partido – e, mais ainda, que atuam em partidos – é, de fato, uma manifestação da vontade de ter no mundo apenas pensadores asseptizados, que contribuem para a manutenção da ordem, recusam pensar as alternativas ao presente e, assim, endossam as dominações vigentes na sociedade.
Luis Felipe Miguel é professor do Instituto de Ciência Política da UnB. Autor, entre outros livros, de O colapso da democracia no Brasil (Expressão Popular).
O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para dicasdepautaggn@gmail.com. O artigo será publicado se atender aos critérios do Jornal GGN.
“Democracia é coisa frágil. Defendê-la requer um jornalismo corajoso e contundente. Junte-se a nós: www.catarse.me/jornalggn “