O investimento na primeira infância — período que abrange os primeiros seis anos de vida — é uma das estratégias mais eficazes para reduzir desigualdades intergeracionais, com impactos positivos e longevos em indicadores sociais e econômicos. Há sólida evidência científica sobre isso e, de tão enfatizado, esse argumento tornou-se praticamente consensual. Mesmo assim, ainda estamos longe de garantir o atendimento adequado a essa população. Entre a teoria e a prática, há um longo caminho que depende de recursos suficientes e competência técnica para viabilizar políticas públicas bem desenhadas e implementadas em todo o território nacional.
Recentemente, demos mais um passo importante com o decreto, assinado pelo presidente Lula no mês passado, que cria as bases para a Política Nacional Integrada de Primeira Infância (PNIPI). Resultado de propostas feitas pelo grupo de trabalho sobre o tema no Conselho de Desenvolvimento Econômico Social Sustentável, a política acerta — entre vários pontos — no diagnóstico de que é preciso um esforço coordenado de União, estados e municípios, com ações articuladas em diferentes setores (saúde, educação, assistência social…) e foco no combate às desigualdades.
Um exemplo prático de ação proposta no documento que embasou a nova política é a criação de uma base de dados unificada, com informações de diversas áreas — como assistência social, saúde, educação, justiça, direitos humanos etc. — o que pode ser desdobrado em um Sistema de Informação Integrado da Primeira Infância. Essa medida é importante, pois, entre outros motivos, permite uma maior integração entre os serviços ofertados para as crianças nos municípios e estados. Outro ponto relevante é que, para que a PNIPI seja bem implementada, é fundamental que o regime de colaboração seja consolidado entre as três esferas de governo, aprimorando as políticas setoriais a partir da criação de uma governança interfederativa.
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Outra ação promissora proposta no documento que embasou o decreto é o fortalecimento da comunicação com as famílias. Evidências da avaliação de impacto dos programas mais eficazes na primeira infância reforçam o quão importantes são o apoio e a orientação aos cuidadores. Oferecer serviços públicos de qualidade é fundamental, mas o atendimento em creches, postos de saúde ou centros de assistência social será potencializado caso mães, pais e outros responsáveis incorporem em sua rotina ações — muitas vezes simples — que estimulem o desenvolvimento infantil. Paralelo a isso, a conscientização dessa população a respeito de seus direitos tende ainda a facilitar o acesso a serviços públicos essenciais.
Apesar de estarmos ainda em patamares insatisfatórios na garantia de direitos dessa população, é importante reconhecer avanços no período da redemocratização. Nossa taxa de mortalidade na infância, segundo o Unicef, caiu de 63 para 14 mortes por mil crianças até 5 anos de idade entre 1990 e 2022. Entre 1989 e 2023, o percentual de crianças de zero a 3 anos atendidas em creches aumentou de 5% para 39%, de acordo com o IBGE.
Ainda assim, as desigualdades seguem brutais. Levantamento do movimento Todos Pela Educação mostra, por exemplo, que entre os 20% mais ricos, 56% das crianças frequentam creches e apenas 7% não estão matriculadas por dificuldade de acesso. Entre os 20% mais pobres, a taxa de acesso cai para 31%, e a de não matrícula por dificuldade de acesso vai a 28%. A desigualdade é também significativa a partir de um recorte intergeracional. De acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua, do IBGE, 45% das crianças de 0 a 5 anos viviam em domicílios com renda mensal per capita inferior a meio salário mínimo. Entre adultos, essa proporção é de 27%. Ou seja, a pobreza é mais intensa na infância.
O descaso com a população infantil mais vulnerável cobra de todos os brasileiros um alto preço. Olhando para o futuro, a estrutura populacional cada vez mais envelhecida exigirá do país uma qualificação melhor dos trabalhadores em idade ativa. A queda nas taxas de fecundidade, por um lado, facilita o investimento per capita na infância, mas, por outro, traz riscos de, mais uma vez, essa população não ser priorizada no orçamento público.
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Investir na primeira infância é, sobretudo, um imperativo ético para garantia de direitos básicos dessa população. Mas é, também, uma decisão econômica racional, consistente e acertada. Priorizar a infância — um ato de amor e razão, uma escolha pela justiça e eficiência, um caminho para o desenvolvimento sustentável, criativo, dinâmico e equitativo.