Do céu precipitou-se a fúria das águas. Por doze dias, em duas investidas sucessivas, o horizonte cinza esvaziou suas nuvens em dezenas de municípios, oito rios e quatro milhões de almas. A água que estava nos céus se aliou à água que estava nos rios, e a união das águas avançou sobre as cidades, vencendo os muros, os diques e as demais defesas da terra seca. De cima, vinham as chuvas. De baixo, subiam as enchentes. A força das águas derrotava o engenho dos homens. A natureza reteve os mortos, cujos corpos permaneceram submersos em sua obra lamacenta. Reteve também os vivos, subjugados pelo trauma da perda, pela suspensão do presente e pela angústia sobre um futuro incerto. Na madrugada desta terça, 13 de maio de 2024, numa noite silenciosa e imóvel, o Rio Grande do Sul, já afogado na calamidade mais profunda de seus dois séculos de história, aguardava o ataque de mais rios, sem saber quando será possível respirar novamente.
Os fatos e os números são conhecidos, embora frágeis e desconexos. Morreram, ao menos, 147 pessoas. Morreram mães, pais e filhos. Morreu gente nova e morreu gente velha. Mas não houve tempo para o luto. Ninguém conseguia enterrar os seus. Era preciso buscar os 127 desaparecidos e resgatar 76 mil sobreviventes. Cuidar de 538 mil desalojados. Abrigar – dar teto, comida, água e alguma dignidade – a 81 mil pessoas que perderam tudo, menos a vida e a força para insistir nela.
Há informações, mas ainda não há uma história a se contar. Há imagens, mas não há sentido. Nelas, não se escutam os pedidos de socorro. Ou os choros de quem perdeu a família e tudo que se construiu numa vida. Há vídeos e entrevistas com fragmentos necessários do momento. Mas, neles, não há o cheio de morte que exala das águas. Um microfone não capta a boca seca de quem passa sede. Câmeras são incapazes de comunicar a indignidade de quem não consegue tomar banho há semanas – e que jamais admitirá publicamente o desejo envergonhado por uma chuveirada quente de cinco minutos.
O povo gaúcho não se acoelha. Todos começaram a ajudar todos quando o Rio Grande do Sul submergia. Tanto o governo estadual quanto as prefeituras das cidades afetadas alertaram para a catástrofe iminente. Mas, na hora do impacto, não conseguiram fazer muito mais do que isso. O povo logo se juntou para se salvar e salvar quem mais podia. Por dias desnecessários, os governos locais, em vez de liderarem os esforços dos milhares de voluntários, foram pelos milhares de voluntários liderados. Tanto para funcionários públicos, eles igualmente vítimas do desastre, quanto para o povo, não havia manual nem orientação clara. Prevaleceu o caos. A coragem e a solidariedade venceram o desespero e a desorganização, no limite do que havia a ser vencido.
A ajuda do governo federal, dos militares e de milhões de brasileiros veio. Assim como os gaúchos, fizeram o que podiam. Graças à união do Brasil, e apesar do discurso politiqueiro e autoritário da turma que grita “Fake News” para qualquer crítica ao governo Lula, os gaúchos sobreviveram. Mas a sobrevivência é a arte do possível. Para vislumbrar um futuro, o Rio Grande do Sul precisa da esperança do que parece impossível. Daquilo que emerge da imaginação política, e não do que já está em planilhas e propostas de trabalho.
Gestores são necessários – fundamentais, por óbvio. A reconstrução do Rio Grande do Sul, contudo, depende de estadistas: de líderes que saibam apontar o caminho e persuadir os demais, nos governos e fora deles, de que uma visão do impossível é, milagrosamente, possível. A princípio, cabe ao governador Eduardo Leite o impossível que se exige dos políticos em momentos de crise aguda. Se existir outra liderança para essa missão, que se apresente. Mas se engana quem acredita que a reconstrução do Rio Grande do Sul possa ser conduzida de fora para dentro – pela sociedade civil e por empresários.
Hoje, ainda sob o impacto de uma tragédia que comove o país, sobra solidariedade civil e boa vontade em Brasília. Assim como as chuvas, porém, a natureza humana é implacável. Conforme o tempo avance, as águas recuem e a lama que surgir envelheça no noticiário e nas redes sociais, os demais brasileiros e os políticos em Brasília seguirão suas vidas. Haverá palavras de apoio e de compreensão, mas não contem com os Pix. Brasília vai ajudar, claro – mas, sem a comoção da urgência, a reconstrução do Rio Grande do Sul será apenas mais um item na longa lista de prioridades dos três Poderes.
Se não houver imaginação política, a reconstrução será remendo; será a repetição do que já existia, a aposta irracional no que dará errado. Felizmente, as raízes para se imaginar um futuro diferente, um futuro melhor, já estão presentes no solo do Rio Grande do Sul. O espírito do povo gaúcho, de gente trabalhadora, solidária e orgulhosa, mostrou estar fincado em terra firme. Resistiu à fúria das águas. Não há alicerce mais forte.