O que nos resta é a política. Nossa condição humana requer que nos reconheçamos no rosto do outro. O rosto do outro sugere que eu também tenho um rosto. O meu rosto é para o outro, condição de reconhecimento de seu próprio rosto. Este sair de si em direção ao outro e, ao reconhecê-lo, reconhecer-se a si próprio é uma das dimensões da política. Foi este movimento político de conhecimento/reconhecimento uns em relação aos outros que permitiu a formação do bando humano, das cidades, dos Estados, das instituições, das regras, das normas e leis que regem a vida humana em sociedade.
Mas, o reconhecimento de si vinculado ao reconhecimento do outro implicou num certo uso da linguagem que permitiu aos seres humanos atribuir signos e significados aos objetos, às formas de vida animais e vegetais que se encontravam em seu entorno, bem como ao conjunto de entes que se apresentam na natureza. Estabelecer signos e significados implicou na exigência de nomear as coisas, os animais, os vegetais, os minerais, entre outros objetos. Assim, constituíram-se as palavras carregadas de significados. Não pode haver palavra vazia, desprovida de significado. Mesmos as palavras “vazio” e “nada” presentes na língua portuguesa expressam que determinadas situações, lugares ou eventos não podem ser consideradas a partir de determinados conteúdos, mas, sobretudo pela ausência de uma condição ou conteúdo determinado. A linguagem nos permite significar objetos materiais, mas também articular significados abstratos, significar percepções, expressões imateriais.
A linguagem humana permite aos seres humanos constituir o mundo. Os animais também possuem linguagem. No entanto, os animais permanecem sem mundo na medida em que sua linguagem está vinculada a estímulos e instintos próprios da espécie ao qual cada animal pertence. A linguagem humana transcende os estímulos de sua espécie. Ela significa os entes, as coisas e permite ao ser humano articular significados, desenvolver capacidade reflexiva, articular ideias que se apresentam como abstrações advindas dos nomes e de sua carga de significados e assim produzir discursos. A linguagem permite ao humano a criação do mundo como suas mitologias, com seus deuses, com suas crenças e tradições. A linguagem humana convoca o ser humano a exercer sua condição de falante e, assim estabelecer constantes negociações em torno da necessidade de manutenção do mundo. O mundo não pertence a deus, aos deuses, mas é resultado do constituir-se humano na linguagem e pela linguagem.
A política é a arte da negociação, do comércio, da palavra, do uso da linguagem na constituição e manutenção do mundo humano. Para os Gregos Antigos participar da política implicava em comprometer-se com o adequado uso da palavra, da linguagem. O compromisso com a verdade era condição basilar para o cidadão que requeria o uso da palavra no espaço público. O cidadão grego sabia que a política não sobrevive à mentira, ao argumento falacioso, ao discurso dissimulado dos interesses privados sobre os bens públicos. Na cidade-comunidade ateniense, o compromisso com o uso da palavra, a lisura no uso da linguagem em relação ao espaço público, ao espaço comum, ao espaço comunitário era condição sine qua non do exercício da política.
A partir da modernidade à atualidade, o Estado-nação controla, legisla, normatiza e normaliza o espaço político. O espaço político diz respeito às instituições que conformam o Estado e demandam a esfera governamental. Nesta direção, uma das características marcantes dos Estados modernos e constitucionais é a organização do espaço político em base a democracia representativa, o que incide (entre outras situações) na realização periódica de eleições para os poderes executivo e legislativo em suas várias instâncias federadas, união, estados e municípios. O processo eleitoral é normatizado pelo poder judiciário, de acordo com as regras estabelecidas pelo legislativo, que no caso brasileiro de tempos em tempos promove as chamadas reformas eleitorais elaboradas e votas pelo Congresso nacional e sancionada ou vetada pelo poder executivo.
Instituição importante no espaço político eleitoral é o partido político. O partido político é uma instituição crucial para manutenção da vitalidade do espaço político eleitoral no contexto das democracias representativas e dos Estados constitucionais. O partido é (ou ao menos deveria ser) o guardião de uma concepção política, de Estado, de espaço público, de bens públicos, de gestão da coisa pública. O programa de governo, as propostas políticas, a concepção de gestão pública que apresenta à comunidade é a expressão de sua ideologia. Seus candidatos apresentam-se comprometidos com a ideologia do partido. Assim, o processo eleitoral é o espaço político por excelência (isto não exclui que fora dos períodos eleitorais os partidos promovam o debate político) para que partido e candidato se envolvam em intenso debate com os cidadãos em torno de propostas de políticas públicas, programas de governo, participação social e popular na gestão pública, entre outras questões candentes.
Porém, além do espaço político controlado, normatizado, legislado e normalizado pelo Estado e pelas instituições estatais há a política. A política é condição inerente a cada indivíduo, a cada cidadão membro da comunidade independentemente de condição social ou étnica. A condição de membro da comunidade situa o indivíduo na política. O convívio com os vizinhos, com os colegas de estudo, de trabalho, entre tantos outros momentos e grupos com que nos relacionamos requer constantemente o posicionamento sobre condições de convivência digna, respeitosa em âmbito privado e público. O compartilhamento do mundo requer o cuidado com o espaço público, com os bens públicos, aos quais está vinculada a qualidade de vida dos indivíduos e da própria comunidade. Trata-se da política como dimensão humana que se realiza na cotidianidade e, não requer a autorização, a normatização do Estado. Ela é a expressão da condição humana, da percepção da necessidade de constante negociação entre indivíduos e comunidades na busca pelo bem-viver. Ou dito de outra forma, a política pertence a todo e qualquer indivíduo que compreenda as exigências da vida em comunidade, em sociedade. Neste âmbito é fundamental que os indivíduos analisem a conduta dos governantes, a qualidade dos argumentos e das proposições dos senadores, dos deputados, ou no plano local do prefeito e dos vereadores. No exercício da política é fundamental que o indivíduo se envolva com o debate sobre as questões urgentes de sua rua, de seu bairro, de seu município, do seu estado e do país. Na esfera da política, “fazer politica” é condição intransferível para todo e qualquer indivíduo que deseja se comprometer com o compartilhamento do espaço público, do mundo no qual vive e constrói o sentido de sua existência.
A questão determinante no espaço político estatal, bem como na cotidianidade da política é o compromisso com a veracidade da palavra, com a qualidade e comprometimento do discurso relativo ao espaço público e, que incide nas condições que se estabelecem para que se possa compartilhar o mundo. A eleição de governantes comprometidos com os bens públicos, com a conformação de uma gestão pública participativa requer honestidade e clareza do discurso do Partido e de seus candidatos, que se expressam mais efetivamente durante as eleições. Nesta direção, partidos e candidatos tem a oportunidade de proporcionar à comunidade e aos eleitores propostas de políticas públicas, programas de governo e concepções de espaço público e de gestão pública comprometidas com a justiça social, com a equidade, com a abertura de oportunidades de qualificação da vida aos mais diversos segmentos sociais. No que concerne à política cotidiana compete aos indivíduos analisar tais propostas, debatê-las e assumir livremente posicionamentos a partir da compreensão em torno das propostas político-partidárias mais adequadas em sua concepção de sociedade.
A questão determinante e que atinge o espaço do político na atualidade é a profunda crise que atinge o Estado, suas instituições e, que incide na (i)legitimidade da democracia representativa. O Estado se tornou progressivamente ativo a partir de concepções e propostas inerentes a agenda neoliberal. Por um lado, ativo na conformação de um estado mínimo em relação às garantias legais inerentes às relações entre capital e trabalho, em relação a direitos e às questões sociais. Por outro lado, constitui-se como um Estado máximo em relação aos interesses do capital em suas várias instâncias do local ao global desvinculado de sua condição de guardião do espaço do político. Nesta direção, orientou sua atuação no âmbito de um Estado policial e securitário. Assim, na condição de Estado policial ostensivo a serviço da lógica do capital compete-lhe o exercício “legitimo” da violência frente a parcelas de indivíduos, grupos e movimentos sociais, que possam se apresentar como ameaça de distúrbio, de desordem social. Na condição de Estado securitário compete-lhe manter em curso a agenda neoliberal oferecendo garantias ao capital de pagamentos generosos de juros e dividendos.
Neste contexto, o Estado constitucional, pautado na democracia representativa apresenta-se cada vez mais destituído de legitimidade frente à comunidade política nacional. Esvaem-se os vínculos de legitimidade entre poder constituído (o Estado) e o poder constituinte (a sociedade civil e organizada). As instituições estatais não correspondem de forma suficiente às demandas de representatividade social. Os partidos políticos transformaram-se em meras siglas destituídas de ideologia, de programas, ou propostas políticas a serem debatidas publicamente. No interior destas siglas os candidatos buscam ascender à condição de meros profissionais de política bem remunerados, mesmo que para ganhar uma eleição tenham que fazer acordos espúrios de toda natureza com grupos privados na manutenção de seus interesses em detrimento dos interesses públicos e coletivos.
Esta crise do espaço do político demonstra de forma inequívoca, assim como já ocorreu em outros momentos históricos (nazismo e fascismo) que é no seio dos estados constitucionais e ditos democráticos que viceja o sequestro do político por grupos de extrema-direita. A mentira (fake news), a inserção da pauta de valores no debate do político, a depreciação da política, o adestramento da opinião pública, a destruição das instituições, a instauração de comportamento caótico dos líderes políticos, a afirmação de um inimigo da nação, outrora os judeus, na atualidade continuam na lista os comunistas, os progressistas, os fracassados sociais dependentes de programas sociais, os professores de Ciências Humanas, entre outros… são expedientes da destruição do espaço político.
A trajetória histórica demonstra que a ascensão de experiências políticas de extrema-direita que vicejam no interior de estados constitucionais democráticos desenvolve um discurso político ambíguo, senão falacioso em relação aos interesses públicos e aos direitos individuais e sociais. Apresentam-se como salvadores da nação que corre risco de ser destruída pelos seus inimigos (alguns deles já apresentados acima). Apresentam-se como defensores da família, da moral, dos bons costumes. Defensores da propriedade necessariamente pertencente por questões óbvias a grupos econômicos nacionais e internacionais, na medida em que os trabalhadores que compõem quase a totalidade da nação possuem apenas a propriedade relativa de seu corpo e sua força-de-trabalho a ser vendida ao mercado de trabalho em suas múltiplas formas de expropriação do trabalho e da riqueza socialmente produzida.
Por seu turno a questão determinante que atinge a política em sua cotidianidade se apresenta na condição de que desprovido de garantias de trabalho e de renda, lançado na precarização da informalidade do trabalho, ou do microempreendedor individual, os indivíduos empenham-se na luta individual e cotidiana pela sobrevivência. A política não se encontra entre suas prioridades. Acrescente-se a esta condição, a sociedade espetacularizada, que se caracteriza pelo fetiche da mercadoria que enseja a conformação de indivíduos consumidores; a verborragia informacional despejada intensiva e extensivamente sobre estes mesmos indivíduos e, que nada informam, senão desinformam; as perdas de direitos trabalhistas e sociais; a percepção da ausência de compromisso da democracia representativa; a imposição do discurso e das práticas de austeridade fiscal para ajustar as contas públicas do Estado, acalmando o mercado em sua ânsia de ter garantias de que seus dividendos serão pagos, mesmo que isto custe a precarização da vida da população; a ausência de um projeto de desenvolvimento nacional; a proliferação da mentira no espaço do político por políticos eleitos pelo voto popular, entre tantas outras situações que agridem visceralmente a política e, sobretudo a possibilidade do indivíduo em sua cotidianidade “fazer política”.
Diante deste quadro esvaem-se condições de possibilidade da política como arte da palavra, do discurso comprometido com a promoção do espaço público, com os bens públicos. Estamos diante de uma profunda crise entre poder constituído e poder constituinte. Sob esta perspectiva de análise todos os representantes políticos, seja no âmbito do poder executivo, seja no âmbito do poder legislativo são ilegítimos. Representam interesses outros que não os interesses do espaço político em consonância com as demandas da política, da comunidade.
Diante deste cenário, o que fazer nestas eleições municipais que se aproximam? Participar desta encenação, deste jogo de soma zero? Perder o próprio tempo ouvindo tagarelices de candidatos de suas siglas partidárias? Procurar promover o debate com indivíduos capturados pela (i)lógica e falaciosa verborragia dos candidatos salvadores da pátria? Questionar os ventríloquos do discurso neoliberal e suas justificativas de austeridade estatal como meio único para o desenvolvimento nacional? Esforçar-se por demonstrar a estes fundamentalistas os equívocos da privatização do espaço público? Fazer o quê? Votar ou anular o voto como forma de deslegitimação do político e da política capturada pela lógica do capital no interior de uma sociedade espetacularizada? Questões urgentes que não temos condições suficientes de responder, ou de apresentar respostas adequadas. Mas, talvez possa fazer algum sentido o convite ao exercício da potência do pensamento, da reflexão. E, para contribuir nesta árdua tarefa do pensamento cabe-nos indicar a leitura de uma obra do literato português José Saramago: “Ensaio sobre a lucidez”. Seria interessante lê-la com calma. Esta obra pode nos ajudar neste deserto do Real (Žižek) em que nos encontramos.
Dr. Sandro Luiz Bazzanella, Professor de Filosofia