O escritório da procuradoria do Tribunal Penal Internacional (TPI), liderado por Karim A. A. Khan, anunciou na última segunda-feira (20/5), que solicitaria à Câmara de Pré-Julgamento I da corte a expedição de cinco mandados de prisão relacionados à situação na Palestina [1]. Os mandados foram solicitados em nome de três membros do Hamas: Yahya Sinwar, líder do grupo, Mohammed Diab Ibrahim Al-Masri, comandante-chefe da ala militar do Hamas, e Ismail Haniyeh, chefe do escritório político do Hamas; e de duas autoridades israelenses, Benjamin Netanyahu, primeiro-ministro de Israel, e Yoav Gallant, ministro da Defesa.
Em março de 2021, a Procuradoria anunciou[2] a abertura de uma investigação sobre a situação da Palestina, após a Câmara de Pré-Julgamento I decidir que o TPI poderia exercer sua jurisdição sobre o território que se estendia a Gaza e a Cisjordânia, incluindo Jerusalém Oriental. Essa decisão, amplamente discutida em virtude da sensível personalidade jurídica internacional da Palestina [3], foi tomada seis anos depois do Estado da Palestina depositar aderir ao Estatuto de Roma (ER) [4] e aceitar a jurisdição do TPI.
Essa importante movimentação ocorre, não por acaso, alguns poucos meses depois do fatídico ataque contra civis israelenses conduzido pelo Hamas no 7 de outubro passado, um novo capítulo na longa história do conflito entre Israel e Palestina. Além disso, também segue uma série de denúncias de estados-partes ao TPI sobre a situação na Palestina: a primeira, encaminhada em 17 de novembro de 2023 pelos Estados da África do Sul, Bangladesh, Bolívia, Comores e Djibouti [5]; e, em 18 de janeiro de 2024, a segunda, enviada pelo Chile e pelo México [6].
Os mandados de prisão foram solicitados com base no exercício jurisdicional estabelecido no ER, o tratado internacional que fundamenta a atuação do TPI e seus órgãos, incluindo o Escritório da Procuradoria. Os pedidos apresentados pela Procuradoria se apoiam nos artigos 7 (crimes contra a humanidade) e 8 (crimes de guerra) do ER.
No caso dos nacionais palestinos, a Procuradoria imputa-lhes a responsabilidade pela perpetração de extermínio, homicídio, tomada de reféns, estupro e outras formas de violência sexual, tortura, outros atos desumanos, tratamento cruel e ultrajes à dignidade humana enquanto crimes contra a humanidade e crimes de guerra. Os três indivíduos foram indiciados como coautores e superiores hierárquicos, ensejando duas formas distintas de responsabilização (artigos 25 e 28 do ER).
Já no caso das autoridades israelenses, busca-se a imputação pelas condutas de causar inanição (“fome crônica”), causar intencionalmente grande sofrimento ou ofensas graves à integridade física ou à saúde ou tratamento cruel, praticar homicídio doloso e assassinato como método de guerra e dirigir intencionalmente ataques à população civil em geral como crimes de guerra; e extermínio e homicídio, inclusive no contexto de mortes causadas pela inanição, perseguição e outros atos desumanos como crimes contra a humanidade. Como ocorreu com os palestinos, Netanyahu e Gallant também foram indiciados tanto como coautores quanto como superiores.
Em uma detalhada declaração, a procuradoria explicita as fontes das evidências consideradas, incluindo a visita da equipe da procuradoria em localizações estratégicas de Israel e do Estado da Palestina [7]. Em relação a Israel, a procuradoria destacou a imposição do total cerco de Gaza, que envolveu o fechamento total de três pontos de passagens fronteiriços, Rafah, Kerem Shalom e Erez, desde 8 de outubro de 2023, e a restrição arbitrária da transferência de suprimentos essenciais, como comida, medicamentos e o provimento de água e eletricidade para Gaza. Essas medidas teriam sido adotadas como parte de um plano comum de usar a inanição e outras formas de violência contra a população civil de Gaza como um método de guerra para eliminar o Hamas, para assegurar o retorno dos reféns e para punir coletivamente a população civil palestina, percebida como uma ameaça a Israel.
Ponto que, entretanto, não pode deixar de despertar a atenção é o cuidado da procuradoria em destacar e reforçar a sua atuação independente e imparcial, bem como de todo o Tribunal. Esse cuidado é diretamente relacionado com manifestações anteriores em que o Escritório da Procuradoria condenou as tentativas de ameaça e retaliação que visavam intimidar e influenciar o trabalho do TPI [8]. Trata-se de um sonoro recado à comunidade internacional após notícias de que representantes do Poder Legislativo dos Estados Unidos teriam se reunido para discutir medidas contrárias ao TPI e seus representantes caso se confirmasse a expedição de mandados de prisão contra autoridades israelenses [9]. E nisso, a Procuradoria não está só, pois no mesmo sentido já se manifestou a Presidência da Assembleia de Estados-Partes do TPI, que apoiou a independência, integridade e imparcialidade do órgão [10].
Khan adota um tom cauteloso, mas firme em sua declaração. De fato, a nota da Procuradoria reitera o argumento de que teria agido de acordo com as determinações da Câmara de Julgamento quanto ao exercício da jurisdição nos territórios israelense e palestino, e que a solicitação apresentada era resultado de não apenas uma investigação independente e parcial, que identificou estritamente os fatos e apresentou conclusões baseadas em evidências à Câmara de Pré-Julgamento, mas que também recebeu o apoio de um painel de especialistas em Direito Internacional convocado pela Procuradoria para apoiar a revisão das provas e a análise jurídica dos fundamentos do pedido [11].
A Procuradoria ainda reforçou que o Direito Internacional e a lei dos conflitos armados devem ser aplicados a todos, e que o TPI tem como seu objetivo fundamental a erradicação da impunidade por atrocidades. Khan foi categórico: a aplicação desigual e a seletividade da lei levarão ao colapso de todas as comunidades e os indivíduos e da rede de proteção pela qual as vítimas de crimes internacionais anseiam em tempos de sofrimento. Para o procurador, essa é a hora de demonstrar que o Direito Internacional Humanitário deve ser igualmente aplicado a todos os indivíduos e situações enfrentados pelo escritório e pelo TPI; é assim que poderá se provar tangivelmente que todas as vidas têm o mesmo valor.
Movimento bem-vindo
Mesmo para os detratores da Corte, o movimento é bem-vindo. O TPI é amplamente criticável nos últimos anos, já que sua atuação vem sendo conduzida de forma vorazmente seletiva e, assim, dando combustível àqueles que o apontavam como um tribunal constituído apenas para processar africanos. Ao priorizar casos e acusados cuja repressão coincidia com o interesse econômico e político do Ocidente, a Corte alimenta a crítica de ser mais um instrumento — agora punitivo — para manutenção do status quo na comunidade internacional.
O pedido de prisão de um líder de governo que está direta e historicamente vinculado aos interesses ocidentais serve, assim, como um golpe franco aos críticos do TPI e pode representar um movimento de renovação das diretrizes da Corte ou, ao menos, da sua Procuradoria. Diante do delicado histórico de decisões mais recente desse órgão, isso já é um acalento.
Tribunal Penal Internacional
Não se deve acreditar, entretanto, que o TPI abandona definitivamente suas características mais inconvenientes. Como materialização do poder punitivo que é, e constituído no selvagem espaço das relações internacionais, o TPI é um órgão violentamente seletivo e atuará sempre de forma política e politizada, o que serve a reforçar a crença de que não se pode esperar a garantia da paz ou a proteção de direitos humanos a partir da repressão penal, sobretudo internacional.
Contudo, se o TPI se propuser a oferecer um processo pleno de garantias aos acusados dos graves crimes que lhes são imputados e se preservar, tanto quanto possível, a sua complementaridade, a condenação de alguns autores de crimes contra a humanidade ou crimes de guerra não deixa de ser um movimento de justiça desejável.
Para além disso, e diferentemente do que ocorre no plano nacional, no espaço das relações internacionais, os efeitos indiretos da atuação punitiva, ainda que episódica, não podem ser desprezados e, se manejados com razoável eficiência, podem servir como instrumentos conjuntos de controle e gestão da violência. Mas isso ocorrerá apenas se a repressão penal for acompanhada de outras ações mais aptas à garantia da paz, aquelas que repensem as situações sociais conflituais e apliquem medidas tendentes a diminuir compreensivamente o imenso abismo entre países do norte e do sul.
O TPI não serve a tanto e não é capaz de cumprir essa função; esperar que ele atue nesse sentido é esperar o impossível. Para que a paz se produza, é fundamental um pacifismo ativo [12], ou seja, é necessário que a comunidade internacional se disponha definitivamente a tomar medidas limitadoras eficientes diante dos conflitos que possibilitam a ocorrência de crimes contra a humanidade e de crimes de guerra, e que não se mantenha apenas ansiando pela condenação criminal de um punhado de convenientes, oportunos e situacionais inimigos da ordem mundial — o que quer que isso signifique.
Por fim, é importante reforçar que o movimento da procuradoria é ainda um pedido que pode ser negado pela Câmara de Pré-Julgamento caso se entenda que não há razões suficientes para crer que os acusados tenham cometido crimes da competência do TPI (artigo 58 do ER). Dessa decisão, ademais, ainda cabe recurso. Até hoje, apenas uma solicitação de expedição de mandado de prisão foi negada [13], embora tenha sido posteriormente deferida em uma solicitação subsequente [14]. E a decisão sobre a expedição, ou não, sobre um mandado de prisão pode demorar meses. Além disso, a Procuradoria ainda pode alterar esses mandados e solicitar outros, contra outras pessoas envolvidas no conflito. Há, portanto, um longo caminho adiante.
Por isso mesmo, os que esperam uma solução rápida e simples deverão esperar sentados. Ao contrário do que se defende, a minguada repressão penal internacional direta realizada até hoje produziu mínimos frutos quando comparada às desgraças enfrentadas comumente pela comunidade internacional. E é triste dizer que não há nada no horizonte das relações internacionais que indique mudanças substanciais nesse quadro.
Isso, entretanto, não significa dizer que a justiça penal não deve agir e é essa a razão pela qual o pedido da procuradoria é importante. O que precisa ficar claro, todavia, é que se a resposta internacional se mantiver apenas na esperança da condenação criminal simbólica de um pequeno — pequeníssimo — número de pessoas dentre o imenso número de responsáveis pelos absurdos da guerra, então a garantia de uma paz duradoura estará ainda muito distante e não passará de mais uma quimera.
É natural e bem-vindo que a manifestação da procuradoria tente se afirmar como órgão resistente às pressões políticas. É o que se espera de um tribunal e é uma demanda que pesa sobre os ombros do TPI desde a criação do Estatuto de Roma, há mais de 25 anos. Entretanto, é importante que se entenda que a justiça penal não é apolítica e não permanece isolada do jogo de forças mundial.
No violento espaço internacional, sempre haverá pressão sobre órgãos jurisdicionais. Por isso, não há nada que indique que também o caso da Palestina não seguirá na mesma linha de movimentos anteriores da Procuradoria e da Corte. Cabe à coletividade internacional também se mover em outros sentidos em busca da paz para que a justiça penal não fique isolada e termine pusilânime, isolada e desacreditada.
______________________________
[1] Statement of ICC Prosecutor Karim A.A. Khan KC: Applications for arrest warrants in the situation in the State of Palestine. In: ICC, 20 de maio de 2024. Disponível em: https://www.icc-cpi.int/news/statement-icc-prosecutor-karim-aa-khan-kc-applications-arrest-warrants-situation-state.
[2] Statement of ICC Prosecutor, Fatou Bensouda, respecting an investigation of the Situation in Palestine Image. In: ICC, 03 de março de 2021. Disponível em: https://www.icc-cpi.int/news/statement-icc-prosecutor-fatou-bensouda-respecting-investigation-situation-palestine.
[3] Cf., por exemplo, RICCARDI, Alice. The Palestine decision and the territorial jurisdiction of the ICC: Is the Court finding its inner voice? In: Question of International Law, 28 de fevereiro de 2021; RÉMOND-TIEDREZ, Juliette. The International Criminal Court’s Decision on its Territorial Jurisdiction over Palestine: Between Power Dynamics and Political Legitimacy. Confluences Méditerranée, v. 21, n. 2, p. 149-159, 2021.
[4] The State of Palestine accedes to the Rome Statute. In: ICC, 07 de janeiro de 2015. Disponível em: https://www.icc-cpi.int/news/state-palestine-accedes-rome-statute.
[5] Disponível em: https://www.icc-cpi.int/sites/default/files/2023-11/ICC-Referral-Palestine-Final-17-November-2023.pdf.
[6] Disponível em: https://www.icc-cpi.int/sites/default/files/2024-01/2024-01-18-Referral_Chile__Mexico.pdf.
[7] ICC Prosecutor, Karim A. A. Khan KC, concludes first visit to Israel and State of Palestine by an ICC Prosecutor: “We must show that the law is there, on the front lines, and that it is capable of protecting all”. In: ICC, 03 de dezembro de 2023. Disponível em: https://www.icc-cpi.int/news/icc-prosecutor-karim-khan-kc-concludes-first-visit-israel-and-state-palestine-icc-prosecutor.
[8] Disponível em: https://x.com/IntlCrimCourt/status/1786316229688414518.
[9] RAVID, Barah; NEUKAM, Stephen. Scoop: Senators meet with ICC over concerns about possible Israel arrest warrants. In: Axios, 02 de maio de 2024. Disponível em: https://www.axios.com/2024/05/02/israel-icc-warrants-us-senators-meeting.
[10] Statement by the Presidency of the Assembly of States Parties in support of the independence and impartiality of the International Criminal Court. In: ICC, 17 de maio de 2024. Disponível em: https://www.icc-cpi.int/news/statement-presidency-assembly-states-parties-support-independence-and-impartiality.
[11] Report of the Panel of Experts in International Law. In: ICC, 20 de maio de 2024. Disponível em: https://www.icc-cpi.int/about/otp/special-advisers-to-the-prosecutor/panel-of-experts-in-international-law/report-of-the-panel-of-experts-in-international-law.
[12] BOBBIO, Norberto. Il Problema della guerra e le vie della pace. Quarta edizione. Bologna: Il Molino, 1997.
[13] TPI. Case Sheet Information: The Prosecutor v. Sylvestre Mudacumura. ICC-PIDS-CIS-DRC-05-006/18_Eng. Haia: TPI, 2021. Disponível em: https://www.icc-cpi.int/sites/default/files/CaseInformationSheets/MudacumuraEng.pdf.
[14] TPI. Pre-Trial Chamber I. Decision on the Prosecutor’s Application under Article 58. Case of The Prosecutor v. Sylvestre Mudacumura. ICC-01/04-01/12-1-Red. Haia: TPI, 2012. Disponível em: https://www.icc-cpi.int/court-record/icc-01/04-01/12-1-red.