“Não é possível que esta conta seja oficial”, “Eu vou para o inferno por rir disso?”, “Este é o melhor perfil que eu já vi na minha vida”.
Comentários como estes são recorrentes nas redes sociais do Comitê Paralímpico Internacional (IPC), que têm viralizado às vésperas das Paralimpíadas de Paris 2024 e ganhado a atenção dos brasileiros. Só no Tiktok, o perfil do IPC já reúne 4,3 milhões de seguidores e mais de 1,8 bilhão de visualizações.
O motivo para as reações dos usuários está na estratégia utilizada pelos perfis oficiais do @Paralympics: vídeos curtos, áudios virais e um humor, no mínimo, controverso. Isto porque alguns dos conteúdos transformam em memes erros, expressões, comemorações e outros momentos de atletas paralímpicos durante competições internacionais.
Em um dos vídeos, que soma mais de 23 milhões de visualizações, o atleta dos Estados Unidos Brad Snyder, que é cego, aparece tateando o ar em busca de sua bicicleta durante uma prova de paratriathlon, até que seu atleta-guia o ajuda a encontrá-la (veja no print acima). O vídeo de 11 segundos utiliza um áudio de uma música de piano, como se Snyder estivesse “tocando o instrumento”, e traz a legenda “Paratriathlon é natação, bicicleta e piano aéreo 🎹”.
A estratégia do IPC para viralizar nas redes sociais foi idealizada por Richard Fox, um ex-atleta paralímpico inglês que competiu no futebol de sete nas Olimpíadas de Pequim, em 2008, e hoje atua como coordenador de redes sociais no comitê.
De um lado, há quem diga que o modelo de Fox é inovador e dá visibilidade ao esporte paralímpico. De outro, quem afirme que os vídeos reproduzem práticas capacitistas contra pessoas com deficiência (PCDs).
O g1 conversou com atletas, entidades esportivas e uma especialista em diversidade para entender os diferentes pontos de vista sobre os virais (veja abaixo).
Em nota enviada ao g1, o Comitê Paralímpico Brasileiro (CPB) afirmou que o tipo de campanha promovido pelas redes sociais do IPC ressalta as diferenças de atletas paralímpicos de forma pejorativa, e vai na contramão do que a entidade nacional entende por inclusão de pessoas com deficiência na sociedade.
“Acreditamos que é possível tratar deste tema sensível com humor, leveza, emoção e descontração, sem recorrer a práticas capacitistas, pejorativas ou ofensivas aos atletas (…) É preciso compreender que as pessoas com deficiência não suportam mais abordagens preconceituosas e discriminatórias, brincadeiras sem graça e, principalmente, a relativização de suas potencialidades”, diz o comunicado (leia a íntegra abaixo).
A preocupação da organização está centrada, principalmente, nos comentários agressivos que parte do público faz nestes conteúdos, muitas vezes fazendo piada com as deficiências dos atletas. Mesmo seguindo outra estratégia de conteúdo em suas redes sociais, o CPB afirmou que também lida constantemente com comentários pejorativos em suas postagens. A organização compartilhou com o g1 parte de um documento oficial que exemplifica o problema.
Questionado sobre o posicionamento do Comitê Brasileiro, o Comitê Paralímpico Internacional afirmou que a conta usa humor para celebrar os atletas e que, com ela, está conseguindo aumentar o interesse no esporte paraolímpico e em questões de diversidade e inclusão.
“O feedback da maior parte dos atletas tem sido extremamente positivo, com muitos repostando os vídeos em seus próprios canais pessoais. Quando tentamos atrair e envolver um público global, aceitamos que nem todos gostem do conteúdo. Às vezes não acertamos, mas a equipe está sempre disposta a ouvir e aprender com o feedback”, diz parte da nota oficial.
A organização também afirmou que ter uma pessoa com deficiência à frente da produção dos conteúdos garante que os vídeos sejam autênticos.
Em entrevista ao g1, Jonas Oliveira, Head de Conteúdo do IPC, afirmou que, até a publicação desta reportagem, o comitê não tinha recebido nenhuma uma queixa formal do CPB ou de outras organizações nacionais sobre o tipo de conteúdo produzido.
🏀O que dizem os atletas
Segundo o porta-voz do IPC, os conteúdos não passam por uma aprovação dos atletas antes de serem publicados, mas ainda assim houve poucos pedidos de remoção de vídeo. A organização não disponibilizou um registro formal destes casos.
“Estes vídeos curtos autodepreciativos são, de alguma forma, uma tendência nas redes sociais. Quando o IPC postou o vídeo da minha queda nas Paralimpíadas em Tóquio, também achei um pouco engraçado. No entanto, não entendi por que a postagem idêntica foi publicada novamente nas plataformas anos depois, como se fosse nova”, contou ao g1 Mareike Miller, jogadora alemã de basquete em cadeira de rodas que teve sua imagem usada no perfil do IPC.
No vídeo em questão, Miller faz uma cesta de 3 pontos e, em seguida, o conteúdo corta para um outro momento do jogo no qual a bola enrosca em sua cadeira de rodas, fazendo com que ela sofra uma queda. O áudio de fundo é um meme que viralizou em países de língua inglesa com a música Crank That, do rapper Soulja Boy.
Para a atleta, o comitê internacional tem um trabalho educacional contra a discriminação de pessoas com deficiência que é modelo para outras entidades. Mas ela questiona se é apropriado que uma organização oficial publique vídeos nos quais os atletas podem ser vistos como “desastrados”.
“Há uma linha tênue entre ser engraçado e fazer piadas inapropriadas. Este é um tópico sensível , que envolve diferentes perspectivas e opiniões. Por essa razão, acho que seria apropriado e desejável em qualquer caso que os atletas retratados fossem consultados com antecedência sobre as publicações”, disse.
Já Martin Perry, atleta de tênis de mesa da seleção paralímpica da Grã-Bretanha, acredita que a campanha nas redes sociais do IPC derruba barreiras em torno das deficiências e dá destaque ao esporte paralímpico.
“Eu adoro o humor dos conteúdos. Como atletas paralímpicos, nós fazemos piadas sobre a deficiência uns dos outros porque é o que amigos fazem, independentemente da deficiência”, disse ao g1.
Competidora de atletismo que vai defender o Brasil nas Paralimpíadas de Paris, Verônica Hipólito também apoia a estratégia do IPC, mas critica a interação depreciativa de parte dos usuários das redes sociais.
“São comentários extremamente capacitistas, comentários sem noção nenhuma. Infelizmente eles acontecem em qualquer tipo de conteúdo que tenha uma pessoa com deficiência, e chega a dar tristeza, raiva, porque são feitos por pessoas sem deficiência”, disse.
Jonas Oliveira, o representante do IPC ouvido pelo g1, afirmou que a moderação de comentários ofensivos é um desafio que cresce conforme os vídeos viralizam em diferentes países. Mas que a organização está em diálogo constante com as plataformas de redes sociais e também com o Conselho de Atletas Paralímpicos para pensar em maneiras de mitigar o problema.
- expressões inadequadas;
- olhares de julgamento;
- invasão de privacidade;
- e ausência de pessoas com deficiência em diversos espaços.
Em entrevista ao g1, Júlia Drezza, consultora do Instituto Mais Diversidade, afirmou que, embora o Brasil tenha uma lei voltada a pessoas com deficiência desde 2015, o país ainda caminha a passos lentos em relação à inclusão.
“Nesse cenário, as brincadeiras, as piadinhas, elas muitas vezes servem como uma forma de proteção. É comum observarmos uma pessoa com deficiência dizendo ‘eu não ligo, não é relevante’. Mas será que de fato não é relevante, ou é um comportamento que nós pessoas com deficiência temos para sermos aceitos? Porque era a única forma da gente ser notado, a única forma possível de viralizar algo nós fizemos?”, disse.
Para a especialista, páginas de grande alcance, como as redes sociais do IPC, têm uma responsabilidade com a causa PCD e precisam zelar pelos conteúdos produzidos.
“Se eu sei que meu conteúdo pode gerar algum impacto negativo, e eu me coloco como uma pessoa aliada, simplesmente não vou repetir aquilo. Estamos falando do TikTok, onde há milhares de pessoas, é óbvio que isso vai chegar em diferentes públicos, com diferentes graus de maturidade, com diferentes níveis de conhecimento sobre o assunto”, explica Júlia.
“O humor é uma ótima ferramenta. Mas o humor precisa não só ter limite, como ter responsabilidade. E não dá para a gente escolher um ou outro. A gente precisa trabalhar isso de uma forma conjunta”.
Confira abaixo a íntegra da nota oficial enviada ao g1 pelo Comitê Paralímpico Brasileiro e a resposta do Comitê Paralímpico Internacional:
Comitê Paralímpico Brasileiro (CPB)
“O Comitê Paralímpico Brasileiro prioriza conteúdos em que as pessoas com deficiência sejam protagonistas, destacando suas potencialidades em vez de suas diferenças. Nossa abordagem visa sempre aumentar a consciência da população sobre a inclusão dessas pessoas na sociedade.
Conceitualmente, a inclusão pressupõe a essência do indivíduo como o ponto central, sendo suas limitações físicas, intelectuais ou sensoriais apenas um detalhe. Este tipo de campanha, portanto, vai na contramão do que entendemos por inclusão, ressaltando as diferenças, e, principalmente, de forma pejorativa.
Acreditamos que é possível tratar deste tema sensível com humor, leveza, emoção e descontração, sem recorrer a práticas capacitistas, pejorativas ou ofensivas aos atletas e demais pessoas envolvidas direta ou indiretamente. É preciso compreender que as pessoas com deficiência não suportam mais abordagens preconceituosas e discriminatórias, brincadeiras sem graça e, principalmente, a relativização de suas potencialidades.
Observamos que certos comportamentos podem parecer desconectadas das realidades enfrentadas pelas pessoas com deficiência fora de contextos específicos. Essa desconexão pode inadvertidamente reforçar discursos preconceituosos e hostis, especialmente em um momento em que se busca respeito e equidade de oportunidades para essas pessoas.
Em uma de nossas transmissões de eventos para crianças com deficiência em idade escolar, por exemplo, já enfrentamos uma torrente de comentários agressivos, a ponto de mães pedirem, nos comentários, que os usuários cessassem as ofensas a seus filhos. Por todas essas razões lamentamos e nos opomos a abordagens que priorizam o aumento de audiência a qualquer custo, especialmente quando isso é feito de forma desrespeitosa e prejudicial.”
Comitê Paralímpico Internacional (IPC)
“Ninguém entende melhor a deficiência do que uma pessoa com deficiência, e ter um paraolímpico como o principal produtor da conta garantiu um conteúdo autêntico, relacionável e divertido, alcançando novos públicos.
O TikTok é diferente de qualquer outro canal digital. Para atrair o público mais jovem, precisávamos nos afastar do conteúdo esportivo tradicional que criamos para nossos outros canais sociais.
Nosso objetivo com o conteúdo do TikTok que criamos é mostrar as habilidades esportivas fantásticas e as conquistas dos paraolímpicos, destacar questões que são específicas e únicas do esporte paraolímpico e mostrar que – como em qualquer outro esporte – erros acontecem de vez em quando.
A conta é uma mistura de celebração e humor e está provocando discussão e interesse no esporte paraolímpico e em questões de deficiência ao redor do mundo.
O feedback da maioria da comunidade de atletas tem sido extremamente positivo, com muitos repostando os clipes em seus próprios canais pessoais.
Quando tentamos atrair e envolver um público global, aceitamos que nem todos gostem do conteúdo. Às vezes, não acertamos sempre, mas a equipe está sempre disposta a ouvir e aprender com o feedback.
Desde que a conta foi lançada em 2020, houve mais de 1,8 bilhão de visualizações de vídeos, enquanto a conta agora tem mais de 4,2 milhões de seguidores. Hoje, @Paralympics é uma das contas de TikTok mais populares e amplamente engajadas no esporte mundial. A conta está engajando positivamente com fãs mais jovens sobre o poder do esporte paraolímpico como uma ferramenta para impulsionar a inclusão social.
Os Jogos Paraolímpicos de Paris 2024 são a maior plataforma do mundo para colocar as pessoas com deficiência em destaque. Temos grandes planos para os Jogos Paraolímpicos e estamos ansiosos para trazer à vida nossos planos com o TikTok nas próximas semanas e meses.”